Museu do Tesouro Real. Uma visão adornada da antiga audácia portuguesa

Museu do Tesouro Real. Uma visão adornada da antiga audácia portuguesa


Abre em novembro a nova ala do Palácio da Ajuda, que irá acolher o Museu do Tesouro Real. Com cerca de mil peças, este vai reunir o acervo de ourivesaria e jóias da antiga Casa Real, com um valor histórico, artístico e cultural incalculável.


A História persiste insatisfeita, com a sua palavra a secar entre os objectos, e os museus erguem-se ali onde as aranhas, de outro modo, seriam rainhas, para que seja devolvida um peso e grandeza aos ruídos trágicos, para que o passado não ganhe a distância de riquezas tenebrosas. Num museu digno, há lugar para a obscuridade, para os momentos em que nos sentimos destroços e restos rejeitados do mundo, enquanto admiramos a face de outra época, essas composições do espanto que caíram em desuso.

Na abertura da nova ala do Palácio Nacional da Ajuda, que receberá o público em novembro, serão expostas mais de 18 mil pedras que se encontram no Tesouro Real. Como lágrimas das coisas, do próprio tempo, e o gemólogo Rui Galopim Carvalho, que teve oportunidade de as avaliar a todas, garante que se trata de uma colecção de encantar esta que relembra as ambições e memórias já amarrotadas do que foi a grande capital de um império.

Deixando de lado a importância histórica, no que toca ao valor das pedras, aquela que mais impressionou este gemólogo foi a laça de esmeraldas – a guarnição do corpete, assim é o nome técnico, uma peça que data da primeira metade do século XVIII. Numa entrevista que deu recentemente à revista Sábado, Rui Galopim de Carvalho vincava que as esmeraldas que serão expostas no novo Museu do Tesouro Real são excepcionais, “de uma qualidade absolutamente planetária”. São 31 esmeraldas, e além da qualidade, todas são da mesma cor, o que torna a colecção única.

226 anos depois da primeira pedra ter sido lançada (a 9 de novembro de 1875, pelo Príncipe Regente D. João), o museu abrirá como se saísse de um longo desejo, e este especialista garante que as nossas jóias estão em linha com as outras grandes casas europeias. “Tivemos peças cobiçadas para as grandes exposições dos diamantes: por exemplo, o nosso Tosão de Ouro [Insígnia da Ordem do Tosão de Ouro, 1790], uma joia muito bem construída, tem ouro, diamantes e uma safira enorme”, sublinha.

O comunicado adianta que a obra que este ano se concluiu veio rematar a ala poente, com a imponência e escala monumental características do Palácio da Ajuda, para a seguir receber um novo espaço museológico. “Com um sistema de segurança do mais alto nível, o núcleo central deste edifício, que se apresenta com uma estrutura em vidro atravessada por lâminas verticais, irá ter uma caixa-forte com 40 metros de comprimento, dez de altura e dez de largura, três pisos e duas portas em aço, com cinco toneladas e 40cm de espessura cada. É aqui que está a ser instalado o futuro Museu do Tesouro Real, onde poderá ser visitada a exposição permanente de um acervo de valor histórico, artístico e cultural em coleções de ourivesaria e jóias da antiga Casa Real”.

Na cerimónia que assinalou o ponto final desta obra iniciada no final do século XVIII, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, referiu-se a este passo que sacode o pó de tanto tempo, dizendo que, sendo vulgar a uma responsável político participar de inaugurações ou na conclusão de restauros e requalificações de edifícios significativos do nosso espaço público, se a alguns a longa demora convidaria “a meditações patrióticas, mais ou menos masoquistas, sobre as nossas demoras, ineficácias ou insuficiências orçamentais”, o chefe de Estado disse preferir incluir-se entre os outros, aqueles que preferem lembrar “a continuidade histórica de Portugal e a relação apaziguada, sem deixar de ser crítica, que podemos ou devemos ter com a História”. Marcelo Rebelo de Sousa ressalvou ainda que as jóias da Coroa, que farão parte do espólio do novo museu, não estarão presentes como ícones da monarquia, mas “como legados e símbolos, não apenas do poder político, mas da continuidade de uma soberania que esteve ameaçada.”

Marcelo prefere assim destacar esse ruído humilde no qual se fundem tantos sons trémulos e que caracteriza a longa digestão do tempo, a História que que se faz da onda sonora que viaja através dos séculos, “ilusoriamente doce com todo o som de dor que nos chega do passado e do qual colhemos apenas o sortilégio e não o sofrimento” (Claudio Magris). Mas vamos então saber um pouco mais sobre as peripécias desta obra que se iniciou em 1875, com um projeto do arquiteto Manuel Caetano de Sousa, e que se pautava pela estética barroca.

A primeira interrupção deu-se logo depois do início, e só em 1802, já o arquitecto tinha então morrido, foram reiniciadas, tendo agora a orientar a obra um projeto dos arquitetos Francisco Xavier Fabri e José da Costa e Silva, mais moderno, já com uma estética neoclássica, expressão arquitectónica dominante nessa época na Europa. Cinco anos foi o tempo que lhes foi dado para fazer alguma coisa daquele tabuleiro desordenado, pois em 1807, com as invasões francesas, a obra é de novo interrompida.

Se parecia claro então que esta seria uma obra marcada pelo próprio movimento doloroso da História, ficava claro então que a história particular desse museu seria marcada também pela persistência, sendo retomada em 1818, agora tendo António Francisco Rosa assumido a condução dos trabalhos. Mas se a ideia era que o Palácio, a ser construído conforme o projeto inicial, fosse um dos maiores da Europa e do mundo, aos poucos o país foi revendo as suas ambições, e com elas a ficarem amarrotadas, também a dimensão desta obra se viu reduzida para um só pátio, tornando-se a fachada nascente a fachada principal.

De acordo com o comunicado do Palácio Nacional da Ajuda, a totalidade do projeto, que também inclui a requalificação do espaço público na Calçada da Ajuda, teve um valor de investimento de 31 milhões de euros, maioritariamente viabilizado pelo Fundo de Desenvolvimento Turístico de Lisboa.

Assim, e apesar das inúmeras tentativas que se fizeram, durante o século XIX e século XX, com vários projetos de remate ao longo de mais 200 anos, só em 2016 se iniciou finalmente o projeto e as obras necessárias ao remate poente do Palácio Nacional da Ajuda para instalação do Museu do Tesouro Real.

Nos próximos meses, até à abertura em novembro, a ala poente continua encerrada enquanto prosseguem os trabalhos de instalação do Museu do Tesouro Real. Posteriormente, diz-nos o comunicado, irá decorrer uma campanha de valorização no Palácio Nacional da Ajuda, nomeadamente a recuperação do pátio, das fachadas e dos espaços exteriores.

No fim, este museu contará com uma exposição permanente pensada em 11 núcleos, que inclui ouro e diamantes do Brasil, moedas e medalhas da Coroa, jóias provenientes das antigas colecções particulares de diferentes membros da família real, salvas e pratas portuguesas quinhentistas, as antigas colecções particulares do rei D. Fernando II e do seu filho D. Luís I, ofertas diplomáticas e até a Baixela Germain, assim designada por ter sido encomendada ao ourives François-Thomas Germain após o terramoto de 1755.

Agora, como um punhal cravado nos cheiros do passado, o Palácio Nacional da Ajuda torna-se um promontório com uma vista larga sobre o futuro, que nos permite calcular bem os passos seguintes na nossa insana corrida atrás da eternidade. Somos já de um tempo que encara com uma certa sobranceria o que ficou para trás, mas esta caixa forte é também um resumo de uma audácia de que hoje, nesta época cheia de complexos, já nem se pode falar.

Foi com os Descobrimentos que começámos a comercializar jóias de todo o mundo. Rui Galopim de Carvalho traça essa rota, dizendo que do Sri Lanka vinham as safiras, da Índia os diamantes. “As pedras confluíam para Goa e vinham para Portugal, mas foi do Brasil que vieram os diamantes.” Agora, sob um forte aparato de segurança, com uma série de medidas de controlo, serão mostrados 900 exemplares de joalharia real, 830 de joias do quotidiano, pratas utilitárias e decorativas, peças de ordens e condecorações, documentação e iconografia. A expectativa é que o museu acolha 250 mil visitantes por ano.

E pode ser que o tempo se livre destes vigilantes nocturnos que pretendem que a História seja toda lida segundo uma coacção ao embaraço, perdendo de vista a forma como, para os vivos, a vida parece eterna e eterno cada gesto desenhado com esse fulgor, esculpindo para sempre uma imagem que não pretende ser agradável, mas que, aspirando a uma qualidade épica, pressupõe antes uma vida penetrada de sentido, a respiração do todo ao invés de se remeter meramente a essa era da lamentação elegíaca pela totalidade perdida e que se contenta com simples recapitulações culturais.