Praça de Touros da Azaruja. De arena a ruína e de ruína a centro cultural

Praça de Touros da Azaruja. De arena a ruína e de ruína a centro cultural


Há anos ao abandono, a mais antiga praça de touros do país vai ganhar uma nova vida que nada tem que ver com touradas. A primeira fase do projeto de requalificação prevê a abertura de uma galeria de arte, de dez residências para artistas e uma biblioteca.


Se poucos sabem que a mais antiga praça de touros de Portugal se encontra numa pequena aldeia perto de Évora, conhecida como Azaruja, menos ainda imaginarão que já se perdeu a conta aos anos que o edifício está ao abandono. No exterior, as paredes outrora brancas encontram-se cobertas de manchas escuras e eriçadas de arbustos. No interior, a arena deu lugar ao mato rasteiro. Orgulhosos do seu “cantinho” no interior do Alentejo, há muito tempo que os azarujenses desejavam ver a praça de touros, que entretanto foi colocada à venda, com a vida que outrora possuiu.

José Chaves, diretor da Associação Cultural Zaratan – que detém a galeria de arte contemporânea em Lisboa com o mesmo nome –, estava a navegar na internet, à procura de um espaço para expandir, quando viu o anúncio da venda desta “preciosidade ancestral”. Ao princípio “riu-se”, por ver uma praça como esta estar à venda na internet. Mas após algum tempo de reflexão percebeu que a compra poderia resultar num projeto interessante. Além de servir de ponte entre a cultura da capital e a cultura azarujense, cumpriria o desejo antigo de todos os seus habitantes de ver a praça, e talvez a povoação, ganhar uma nova vida.

UMA PRAÇA DE TOUROS À VENDA NA INTERNET “Dentro de um grande reboliço e de uma criação contínua que estava em constante expansão, começámos a perceber que não tínhamos espaço suficiente para tudo aquilo que queríamos fazer acontecer”, explica José Chaves, diretor da associação. A princípio a sua equipa começou por procurar espaços próximos da sua sede, localizada no centro da capital, na Rua de São Bento. Depois, a ideia de mudar a própria sede foi posta em cima da mesa. Depressa se percebeu que não seria a opção mais viável e, no processo de procura, “encontrámos uma praça de touros à venda”, revelou. “Claro que nos rimos muito, achámos muita piada um local como aquele estar assim à venda. Mas deixámos essa ideia na gaveta, e continuámos à procura de algo mais tangível”, recorda.

“Depois de refletirmos, decidimos falar com os novos donos do espaço, porque entretanto a praça tinha sido vendida. Disseram-nos que era exatamente disto que estavam à procura”. Após a conversa, seguiu-se a assinatura do contrato de comodato com a associação, que garante que, enquanto existir e continuar a produzir cultura dentro dos parâmetros que já fazia em Lisboa, a praça é propriedade sua.

A CERTEZA DE QUE ESTE SERIA O SÍTIO CERTO Apesar do contrato ter sido celebrado antes da pandemia da covid-19, o diretor assegura que a sua intenção se mantém inalterada. Os tempos duros que a associação atravessou só o fizeram ter a certeza de que tinham escolhido o sítio certo: “Porque a cidade gasta as pessoas e estamos numa altura, passado sete anos de termos ‘nascido’, que já não temos as mesmas idades, precisamos de arrumar tudo, de espaços para pensar, de conseguirmos olhar verdadeiramente o céu e não vermos apenas prédios altos”, explica.

Além do ritmo diferente que teriam no interior alentejano, os membros da associação refletiram o quão seria bom “tanto para os artistas de Lisboa, como para os artistas que transitam à volta de Évora, unir esses dois pólos e, ao mesmo tempo, ir para um sítio que está a morrer”, acrescenta. Na Azaruja, só a produção de cortiça ainda faz com que algumas pessoas de meia idade e jovens tenham trabalho, mas é o único setor empregador da região. “Nós acreditamos que, com a praça de touros como centro cultural e funcional, vamos conseguir dar emprego a bastantes pessoas e essencialmente a jovens”.

Apesar do mau estado em que se encontra, a praça de touros da Azaruja “emana uma energia muito especial”, continua José Chaves. “É quase uma energia ancestral, uma arena romana com todos aqueles arcos maravilhosos” que a tornam um lugar tão “singular”.

A HISTÓRIA DA ZARATAN A Zaratan Associação Cultural é uma associação sem fins lucrativos criada por um grupo de jovens artistas já lá vão quase sete anos. Se, como diz “um dos grandes gurus da arte contemporânea, que a localização é a coisa mais importante para o sucesso de uma galeria de arte contemporânea”, a Zaratan tem o futuro garantido. A sua localização, na rua de São Bento, em Lisboa, a dois passos do Parlamento, dificilmente podia ser mais central.

O propósito do grupo sempre foi “romper com as tradicionais galerias de arte contemporânea” e fazer algo diferente. Depois de terem encontrado o espaço começaram a desenvolver exposições (já realizaram 200 exposições até hoje) e, ao mesmo tempo, a ser um espaço de acolhimento para artistas visuais e músicos. “Portanto, decidimos também abrir um espaço multiusos, que utilizamos para concertos, performances e sessões de cinema experimental”, esclarece o responsável. Além destes eventos, a associação iniciou também um programa de residências internacionais em 2018: “Temos cerca de 70 residências de artistas que vêm desde a Nova Zelândia ao Canadá, muitos artistas da Europa, Ásia e por aí fora”, adianta o responsável.

OS PLANOS PARA O NOVO CENTRO CULTURAL DA AZARUJA O desafio no Alentejo será trabalhar as mesmas temáticas da mesma forma com que a associação trabalha em Lisboa. De um espaço de 200 metros quadrados, o grupo migrará para outro com 2200 metros quadrados: “É trabalhar com mais espaço, com mais qualidade, com mais tempo, com outras condições, mas continuar a desenvolver o mesmo trabalho. Aliás, vamos continuar com o nosso espaço em Lisboa. Artistas que venham em residência, vão permanecer um espaço de tempo na praça de touros, e outro espaço de tempo em Lisboa”. Dá-se o caso até de haver uma coincidência curiosa: “O nosso espaço em Lisboa situa-se na Rua de São Bento e a praça de touros encontra-se na aldeia da Azaruja, que tem como nome maior São Bento do Mato. Por isso, vamos estar entre São Bento e São Bento do Mato”, partilha o diretor.

A PRAÇA DE TOUROS O primeiro registo existente desta praça faz-nos viajar até ao ano de 1870. Mas investigadores e historiadores eborenses acreditam que as suas origens são bastante anteriores, remontando, pelo menos, a cerca de 200 anos ou 300 anos. Inicialmente, começou a ser utilizada como um toril, onde as vacas ficavam bloqueadas para lhes dar o feno. Posteriormente começaram as corridas de vacas e touros.

“Inicialmente foi criada uma estrutura de madeira, que organicamente foi passando para uma estrutura já de tijolo, um tijolo que é cozido ao sol e não em forno. Percebe-se que houve uma construção em cima de construção”. A verdade é que grande parte da história desta praça continua por descobrir. E José Chaves revela que a associação se encontra, neste momento, em contacto com historiadores eborenses, precisamente para desvendar o que lhe aconteceu ao longo dos anos.

Num país onde a maior parte das praças de touros pertencem às Câmaras Municipais, a da Azaruja constitui uma exceção, já que foi sempre propriedade privada. “Existem muitas histórias e as pessoas da localidade sabem-nas, mas nós, por respeito, ainda não quisemos aflorar demasiado essas questões, pois sentimos que há uma certa tristeza intrínseca”, revela o diretor da Zaratan. “Por exemplo, sabemos que, não com os donos anteriores, mas numa geração anterior, metade da praça de touros era de um padre da aldeia, a outra metade era de um corticeiro que acabou por comprar a quota do padre e, dentro da praça de touros, colocou uma fábrica de cortiça”, adianta. Portanto, sabe-se que a última função desta praça esteve relacionada com a cortiça, onde se realizava a sua transformação. “Depois de ser tirada das árvores, a cortiça precisa de ir para um forno e de ser cozinhada em água. Havia então um forno dentro da praça, com uma grande chaminé”, acrescenta. Com o passar do tempo, a exposição à intempérie e a falta de manutenção fizeram com que a praça passasse a estar registada como “ruína”.

A REAÇÃO ENTUSIASTA DOS AZARUJENSES Quando o projeto de reconstrução da praça estiver concluído, os azarujenses vão finalmente realizar um dos seus grandes desejos coletivos, “devolver vida ao centro da cidade”. Segundo o diretor da associação, o feedback dos moradores da aldeia tem sido positivo: “O que toda a gente nos diz, desde o senhor do restaurante, ao Presidente da Junta, às pessoas que passam por nós na rua e percebem que somos os responsáveis pela reconstrução da praça, é: “Então mas isto já não está feito?””. Outro comentário que já tem ouvido é: “Tomem atenção que eu quero assistir a isto e não vou durar muito mais tempo!”. “A praça é o centro da vila e toda a gente quer que ela funcione, toda a gente quer ajudar de todas as formas possíveis”, comenta.

O PROCESSO DE RECONSTRUÇÃO Neste momento, o projeto encontra-se na fase final de licenciamento. José Chaves acredita que, dentro de dois a três meses, todas as burocracias estarão finalizadas, permitindo o início do processo de reconstrução. “A partir daí, estamos preparados e temos o dinheiro de bolso dos associados e do mecenas para iniciar a obra. Não temos o valor total, daí termos feito uma campanha de angariação de fundos para que o público em geral, se se identificar e interessar, nos poder doar dinheiro ou comprar objetos onde esse valor monetário reverte para a reconstrução da praça”, esclarece o responsável.

Não havendo possibilidade de realizar a obra de uma empreitada só, “foi-nos recomendado pelo arquiteto e pela própria Câmara a fasear as obras, tendo assim tempo para angariar o dinheiro para cada uma das fases”, explica. A primeira fase prende-se com a consolidação estrutural, para evitar o risco de derrocada. “Como é uma praça de touros muito antiga, não tem eletricidade, água, esgotos e, por isso, começaremos também por aí. Será a base, para que possamos começar a viver o espaço de uma forma segura e de uma forma funcional”, elucida. “Nós vamos preservar todas as características da praça. Os arcos, por exemplo, não estão todos juntos, houve alguns que caíram, portanto, estruturalmente, se houver um sismo, a probabilidade de caírem é muito grande. Nós só vamos fechar o círculo para evitar desgraças”, garante. Antes de ficar decidido avançar com o contrato e com o projeto de reconstrução, a associação falou com a equipa de arquitetos responsáveis. “Asseguraram-nos que, apesar de parecer que está tudo em muito mau estado, se nada caiu até agora, não há de cair”.

Na segunda fase, vendo nas fotografias a 3D, existirá um pequeno edifício com telhados. “É precisamente aí que será a nossa galeria de arte. Nesta fase é esse o objetivo: abrir a galeria de arte nesse pequeno edifício e, nas outras casinhas todas onde existem aquelas portas e janelas, abrir 10 estúdios de artista e uma biblioteca”, promete. Na terceira fase, “vamos colocar os painéis solares, os ares condicionados que estão diretamente ligados à energia solar, por uma questão ecológica, claro”. José Chaves alerta para as questões ambientais e admite querer que o centro cultural “seja o mais auto suficiente possível”.

Se a praça já é especial pela sua idade e valor, o projeto a 3D revela como esta se transformará num edifício branco que harmoniza contemporaneidade e técnicas de construção tradicionais: “O centro cultural vai ser pintado com um tinta cal viva, muito alentejana. Além de dar esse tom muito branco, também tem propriedades germicidas, que ajudam a preservar as paredes. Dentro dessa construção, só vamos poder utilizar técnicas antigas, ancestrais, as únicas que podem ser utilizadas na reconstrução”. Quando se trata de recuperar a praça de touros mais antiga do país, todos os cuidados são poucos.