A negociação das penas em processo penal


Passada quase uma década, o Governo pretende retomar a estranha iniciativa de 2012. A mesma pretende que o processo penal português deixe de ser um processo de julgamentos para passar a ser um processo de acordos, à semelhança do que sucede no sistema norte-americano.


Foi notícia esta semana a existência de uma proposta do Governo no sentido de alterar o Código Penal e o Código de Processo Penal para os adaptar à Estratégia Nacional Contra a Corrupção, consagrando a negociação das penas em processo penal. Efectivamente, a Estratégia Nacional Contra a Corrupção propôs “uma alteração ao Código de Processo Penal no sentido de prever a possibilidade de celebração de um acordo sobre a pena aplicável, na fase de julgamento, assente na confissão livre e sem reservas dos factos imputados ao arguido, independentemente da natureza ou da gravidade do crime imputado”. Em consequência o Governo veio agora propor ao Parlamento uma alteração ao nosso regime processual penal para que passe a ser possível ao Tribunal acordar com o Ministério Público e com o arguido a pena aplicável no processo, desde que este confesse o crime praticado.

Esta proposta tem antecedentes numa recomendação feita em 13/1/2012 pela actual ministra da Justiça, quando era procuradora-geral Distrital de Lisboa, aos magistrados do Ministério Público, em sentido favorável à realização de acordos sobre a sentença em processo penal, tendo efectivamente sido celebrados alguns acordos a estipular a pena aplicável, apesar da sua manifesta ilegalidade. A situação viria, no entanto, a ser corrigida por um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/4/2013, que não só considerou ilegal a celebração de acordos negociados de sentença em processo penal, como qualificou como prova proibida a obtenção de uma confissão nessas condições. Em consequência, a então procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, emitiu a Directiva 2/2014, de 21/2/2014, determinando que os magistrados e agentes do Ministério Público se deveriam abster de promover ou aceitar a celebração de acordos sobre sentenças penais.

 Passada quase uma década, o Governo pretende assim retomar esta estranha iniciativa de 2012, o que só pode merecer o mais completo repúdio. Na verdade, a mesma pretende que o processo penal português deixe de ser um processo de julgamentos para passar a ser um processo de acordos, à semelhança do que sucede no sistema norte-americano. Tal situação violaria claramente o princípio da legalidade e o princípio da culpa, levando a uma verdadeira mercantilização da justiça, em que o melhor negociante acabaria por ser o menos punido, em total contrariedade ao que deve ser o funcionamento da justiça. Na verdade, a justiça faz-se através de julgamentos realizados nos tribunais, com todas as garantias de defesa, não podendo uma condenação penal assentar em acordos, obtidos através de pressão sobre os arguidos, como sucede na proposta de um desconto na pena.

A imagem da justiça em Portugal está pelas ruas da amargura, sendo que na opinião pública existe neste momento a convicção da total ineficácia da nossa investigação criminal, a qual é devida à escandalosa falta de meios com que a mesma se debate. A resposta a esta situação deveria ser por isso um maior investimento do Governo na investigação criminal, levando a uma efectiva perseguição e responsabilização dos criminosos. Em lugar disso, o Governo opta, porém, por um desinvestimento ainda maior, dispensando os julgamentos penais a troco de condenações negociadas com os arguidos, o que obviamente redundará em que alguns bodes expiatórios assumam as culpas dos crimes praticados, deixando os principais criminosos de fora. Tal só contribuirá para agravar a sensação de impunidade existente, gerando nos criminosos a sensação de que, mesmo que sejam apanhados, com uma negociação adequada conseguirão sempre escapar à condenação que deveriam ter.

Pode ser que o Governo julgue que por essa via dará uma imagem de maior eficácia no combate ao crime, aumentando a taxa de condenações para fins estatísticos. É manifesto, no entanto, que se tratará de uma imagem falsa, uma vez que por essa via não se assegurará a efectiva realização da justiça, agravando ainda mais uma situação já de si extremamente grave.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990


A negociação das penas em processo penal


Passada quase uma década, o Governo pretende retomar a estranha iniciativa de 2012. A mesma pretende que o processo penal português deixe de ser um processo de julgamentos para passar a ser um processo de acordos, à semelhança do que sucede no sistema norte-americano.


Foi notícia esta semana a existência de uma proposta do Governo no sentido de alterar o Código Penal e o Código de Processo Penal para os adaptar à Estratégia Nacional Contra a Corrupção, consagrando a negociação das penas em processo penal. Efectivamente, a Estratégia Nacional Contra a Corrupção propôs “uma alteração ao Código de Processo Penal no sentido de prever a possibilidade de celebração de um acordo sobre a pena aplicável, na fase de julgamento, assente na confissão livre e sem reservas dos factos imputados ao arguido, independentemente da natureza ou da gravidade do crime imputado”. Em consequência o Governo veio agora propor ao Parlamento uma alteração ao nosso regime processual penal para que passe a ser possível ao Tribunal acordar com o Ministério Público e com o arguido a pena aplicável no processo, desde que este confesse o crime praticado.

Esta proposta tem antecedentes numa recomendação feita em 13/1/2012 pela actual ministra da Justiça, quando era procuradora-geral Distrital de Lisboa, aos magistrados do Ministério Público, em sentido favorável à realização de acordos sobre a sentença em processo penal, tendo efectivamente sido celebrados alguns acordos a estipular a pena aplicável, apesar da sua manifesta ilegalidade. A situação viria, no entanto, a ser corrigida por um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/4/2013, que não só considerou ilegal a celebração de acordos negociados de sentença em processo penal, como qualificou como prova proibida a obtenção de uma confissão nessas condições. Em consequência, a então procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, emitiu a Directiva 2/2014, de 21/2/2014, determinando que os magistrados e agentes do Ministério Público se deveriam abster de promover ou aceitar a celebração de acordos sobre sentenças penais.

 Passada quase uma década, o Governo pretende assim retomar esta estranha iniciativa de 2012, o que só pode merecer o mais completo repúdio. Na verdade, a mesma pretende que o processo penal português deixe de ser um processo de julgamentos para passar a ser um processo de acordos, à semelhança do que sucede no sistema norte-americano. Tal situação violaria claramente o princípio da legalidade e o princípio da culpa, levando a uma verdadeira mercantilização da justiça, em que o melhor negociante acabaria por ser o menos punido, em total contrariedade ao que deve ser o funcionamento da justiça. Na verdade, a justiça faz-se através de julgamentos realizados nos tribunais, com todas as garantias de defesa, não podendo uma condenação penal assentar em acordos, obtidos através de pressão sobre os arguidos, como sucede na proposta de um desconto na pena.

A imagem da justiça em Portugal está pelas ruas da amargura, sendo que na opinião pública existe neste momento a convicção da total ineficácia da nossa investigação criminal, a qual é devida à escandalosa falta de meios com que a mesma se debate. A resposta a esta situação deveria ser por isso um maior investimento do Governo na investigação criminal, levando a uma efectiva perseguição e responsabilização dos criminosos. Em lugar disso, o Governo opta, porém, por um desinvestimento ainda maior, dispensando os julgamentos penais a troco de condenações negociadas com os arguidos, o que obviamente redundará em que alguns bodes expiatórios assumam as culpas dos crimes praticados, deixando os principais criminosos de fora. Tal só contribuirá para agravar a sensação de impunidade existente, gerando nos criminosos a sensação de que, mesmo que sejam apanhados, com uma negociação adequada conseguirão sempre escapar à condenação que deveriam ter.

Pode ser que o Governo julgue que por essa via dará uma imagem de maior eficácia no combate ao crime, aumentando a taxa de condenações para fins estatísticos. É manifesto, no entanto, que se tratará de uma imagem falsa, uma vez que por essa via não se assegurará a efectiva realização da justiça, agravando ainda mais uma situação já de si extremamente grave.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990