Como a pandemia virou as nossas vidas do avesso

Como a pandemia virou as nossas vidas do avesso


Solidão, medo de sair de casa, ansiedade por estar com pessoas – estas são algumas das consequências do isolamento. Houve quem perdesse o emprego e quem conseguisse fortalecer os laços familiares. A pandemia afetou a vida dos portugueses de diferentes formas. Contamos-lhe quatro histórias que espelham realidades diversas que se repetem um pouco por todo…


Não se conhecem, têm idades diferentes, bagagens diferentes e relatam realidades diferentes. Contudo, Josué Torres, Daniela Rodrigues, Carla Costa e João Oliveira possuem uma certeza em comum: depois da pandemia, as suas vidas não mais serão as mesmas.

“O Josué antes da pandemia era uma pessoa mais confiante, segura com as pessoas que o rodeavam e ansioso por viajar sempre que possível. O Josué pós pandemia, é uma pessoa completamente diferente em termos de ambição e segurança. Por um lado, dá ainda mais valor à família e aos poucos amigos que tem; por outro, sente muita ansiedade e dificuldade nas interações com os mesmos”, resume Josué Torres, makeup artist (maquilhador profissional) de 23 anos.

Daniela Rodrigues, de 25 anos, desempregada, pertence à mesma geração. A pandemia afetou-a, ainda assim, de forma diferente. “Antes da pandemia era mais sonhadora e simultaneamente mais ingénua, acreditava num futuro cheio de oportunidades. Agora, os sonhos começaram a ficar turvos, por isso fui obrigada a tornar-me mais realista e, apesar de não ter perdido a capacidade de sonhar, esta ficou mais comedida e tímida”, explica. “Ao mesmo tempo, creio que a covid-19 me tornou mais forte, mais capaz de lidar com as adversidades da vida num exercício constante para tentar ver sempre o sol por detrás das nuvens”, acrescenta.

Carla Costa atravessou um processo ainda mais complicado. “A Carla era um autêntico furacão que levava tudo à frente, sem muito tempo para momentos de calma e introspeção. A pandemia e a perda do meu pai deram-me a conhecer outra maneira de ver e viver a vida e, sobretudo, de priorizar os meus”, revela a data analyst de 31 anos.

Para João Oliveira (nome fictício), jornalista de 40 anos, nem todas mudanças trazidas pela pandemia foram negativas: o facto de ter passado a trabalhar a partir de casa permitiu-lhe passar a estar mais tempo com os filhos. “Antes havia semanas em que quase não os via”, confessa. Por outro lado, o facto de mudar pouco de ambiente começa a provocar-lhe alguma fadiga, e o próprio admite poder estar “mais irritadiço”.

Uma coisa parece certa:_os meses de confinamento vão deixar cicatrizes em muitos portugueses. Os traumas provocados pela experiência da pandemia estão relacionados com cada fase que esta teve e terá, explica Lisa Fonseca, especializada em psicologia e health & life coach.

“O conceito de trauma não se cinge apenas à exposição a algo extremamente stressante. É um conceito muito mais subtil e não é necessariamente proporcional à intensidade de um evento”, precisa. A maneira como nos vemos, como vemos o mundo e como percecionamos as outras pessoas foi abalada e fez nascer “lacunas entre os nossos sistemas de orientação e esse evento”. Situações “simples” de stresse podem, portanto, acabar por transformar-se em “traumas medidos por sentimentos fortes e prolongados de impotência”. “Estados de ansiedade, crises de pânico, stress pós traumático e depressão poderão ser os mais evidentes, sendo que também surgirão certamente casos de trauma e luto mal processado”, acrescenta.

 

Um luto solitário

É precisamente nesta última situação que se encontra Carla Costa, que aos 30 anos viu partir o seu pai. Embora ainda sem as restrições que mais tarde vigoraram, as circunstâncias não lhe permitiram fazer um luto “normal”. “Agora que já passou um ano, consigo olhar para trás e perceber que fui uma privilegiada. Não tive de escolher cinco pessoas para estarem ao meu lado e poderem despedir-se do meu pai. Creio que além de ser uma escolha difícil, acabaria por ser cruel, porque todos os amores são válidos”, reflete a data analyst.

Quando iniciou o processo de luto ainda tinha a sua rotina habitual, acabando por se focar no trabalho. Contudo, assim que o país começou a fechar, Carla migrou do escritório para casa. Foi precisamente nesse momento que percebeu que se aproximava uma fase complicada: “Tinha perdido o meu pai há pouco tempo, não podia sair para espairecer, não podia deslocar-me até perto da minha família para lhes dar colo e para o receber. A pandemia roubou-me o que mais gosto de fazer, cuidar dos meus, e fazer o luto com os que amo e o amavam”, recorda emocionada. Lutando sempre por manter o autocontrolo emocional, ao fim de algum tempo atingiu um estado de exaustão. Carla admite que viveu muitos dias na base da mentira: “Do outro lado do telemóvel estava a minha mãe a perguntar como é que eu estava”. Para não a preocupar, respondia que se estava a aguentar. “Se dissesse a verdade sabia que ela iria querer vir ter comigo e, devido às restrições, não podia”, lamenta. O facto de não poder estar fisicamente com a mãe fez-lhe sentir, muitas vezes, que estava a falhar enquanto filha.

A partir do momento em que o país foi gradualmente abrindo, Carla passou a aproveitar “cada segundo ao máximo”, prolongando o tempo que passa com a família. Antes, pensava “vou sábado de manhã para cima, e tenho isto e aquilo para fazer”. Agora não. “Vou sexta à tarde. Em vez de ir só para descansar a cabeça, tornou-se numa visita para recarregar baterias e aproveitar o máximo de tempo de qualidade com eles”, adianta. “Se já éramos unidos, tanto com a perda como com a privação do nosso contacto físico, mais melosos nos tornámos. Já não existem telemóveis nos momentos em que estamos todos juntos. Concentramo-nos só uns nos outros!”, acrescenta.

 

O medo de sair de casa

Josué Torres ficou traumatizado na altura em que viu o seu companheiro contrair o novo coronavírus. Sempre se considerou “um bocadinho hipocondríaco”, mas só com a pandemia da covid-19 percebeu a gravidade da situação: “Nós vivemos juntos e foi muito complicado em termos emocionais e psicológicos. Passava os dias a pensar como seria o dia seguinte. Sentia-me sozinho por não poder estar perto dos que mais amo e estava constantemente a desinfetar tudo o que eventualmente podia ser tocado por ambos, de modo a não ficar eu infetado”, explica o maquilhador.

Depois desse acontecimento, percebeu que a ansiedade o acompanharia por muito mais tempo. “Os meus cuidados e o meu medo aumentaram, comecei a isolar-me ainda mais. Preocupa-me a falta de cuidado dos cidadãos, os ajuntamentos desnecessários, aliás, tudo o que envolva qualquer tipo de interação sem máscara mexe muito comigo. Tudo me deixa angustiado”, reconhece. Durante o trabalho, que o obriga a contactar com dezenas de pessoas por dia, Josué entra facilmente numa espiral de ansiedade que o faz bloquear: “É difícil arranjar autocontrolo sob mim mesmo, começo a sentir-me ansioso, a suar das mãos, a ter uma sensação de fraqueza e dificuldade respiratória e obviamente que isso me atrapalha o dia a dia”, explica o profissional da Giorgio Armani. Além disso, sempre que sai de casa, qualquer que seja o sítio onde esteja, o uso de máscara é algo imperativo. Se tem de se encontrar com alguém amigo, ou mesmo um familiar, faz questão de solicitar a utilização dos “testes rápidos para o meu descargo de consciência e de quem me rodeia”, revela.

 

Desconstruir o medo do medo

“A perspetiva de contrair uma doença mortalmente invisível é óbvia, intrinsecamente assustadora e potenciada pelas notícias que diariamente ativam esse medo”, clarifica Lisa Fonseca. No entender da especialista, é importante normalizar a doença de forma a não corrermos riscos de “trauma vicário”. O que significa isso? “Estar constantemente a criar stresse traumático para quem não contraiu a doença”.

Lisa Fonseca alerta também para a importância de “desconstruir o medo do medo”. Pois, neste caso de “medo interoceptivo” (relativo à percepção de estímulos e variações no interior do corpo), a fonte de stress “não é uma ameaça óbvia no meio externo, mas sim na nossa interpretação dos processos mecânicos do corpo”. Por outras palavras: o nosso pensamento é ocupado pelas preocupações de infeção, dos efeitos que poderá ter especificamente no nosso organismo, como lidaremos com essa realidade, etc.

“Esse medo do medo vai gerar ansiedade e sensações fisiológicas. É precisamente sobre elas que temos que trabalhar, com o objetivo de normalizar a doença”, defende. A especialista acrescenta ainda que “em casos de ansiedade extrema, é importante que as pessoas adquiram apoio especializado”. O problema é que neste tipo de situações, “pode existir falta de informação e as pessoas podem ser vítimas do preconceito associado a este tipo de ajuda ou até mesmo à sua necessidade”.

 

O desemprego e a falta de esperança

Daniela Rodrigues encontra-se desempregada há um ano e dois meses. Antes da pandemia era jornalista freelancer num jornal regional. Tinha a expectativa de iniciar um estágio profissional através do IEFP, com a duração de nove meses, e a esperança de permanecer na empresa como efetiva. Mas a pandemia trocou-lhe as voltas. “Lembro-me como se fosse hoje. No dia 16 de março de 2020, o dia em que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa decretou o primeiro estado de emergência, estava a fazer o jantar e a assistir ao telejornal quando o meu telefone tocou”, recorda a jovem. Quando olhou para o ecrã do telemóvel e viu o número da empresa percebeu imediatamente que as notícias “não poderiam ser boas” – e estava certa. “Disseram-me que me tinham de dispensar porque, uma vez que o jornal vivia de publicidade comprada por estabelecimentos locais e estes iam fechar, não havia verba para me manter, nem avançar para estágio”, rememora. “Por segundos, o meu mundo também ficou virado do avesso, e isso a Daniela sonhadora, nunca poderia ter imaginado”. Assim que foi despedida sentiu um peso enorme, sobretudo pela pressão familiar. “Comecei à procura de emprego uma semana depois do meu despedimento. Precisei desse tempo para gerir as minhas emoções e perceber qual seria o próximo passo a dar”. Mas não foi preciso muito tempo até perceber que a procura de um novo emprego ia dar muito trabalho: “As respostas às candidaturas (quando chegavam) traziam anexadas um agradecimento e uma resposta negativa, sempre acompanhada pela frase ‘dadas as circunstâncias do que estamos a viver’”.

Ao longo desse processo a desilusão e a frustração só aumentaram. Daniela começou a interrogar-se sobre o lugar onde pertence, sobre as suas capacidades profissionais e, muitas vezes, teve vontade de desistir. “Há tanta coisa que está mal: são cada vez mais os estágios curriculares, por norma com três meses de trabalho, em que o valor mensal é apenas para ajudas de custo, sem garantias de permanecer na empresa pós término do contrato. Pedem pessoas dinâmicas, com experiência, mas depois não somos pagos. Como é que isso se gere, já tendo uma casa para gerir e contas para pagar?”, interroga a jovem. “Depois, há as ofertas que te dão esperança porque se encaixam no teu curso, até começares a ler os requisitos, onde te apercebes que tens de falar cinco línguas fluentes, tens de dominar um software de design, tens de ter conhecimento em tarefas administrativas, disponibilidade total e anos de experiência”, desabafa. “Isso não é justo, não é motivador, nem gera mais produtividade”.

A ausência de trabalho e as implicações financeiras e sociais daí decorrentes podem provocar sentimentos de rejeição e isolamento, sendo a depressão a consequência “mais constante”, refere Lisa Fonseca. “É importante numa situação destas que a pessoa se concentre no seu auto conhecimento, nos seus talentos, conseguindo assim definir melhor qual a empresa certa para se candidatar ou, quem sabe, criar espaço para um novo projeto”, aconselha a especialista.

E foi exatamente isso que Daniela fez. Ao longo deste ano e dois meses, criou dois projetos que por um lado a ajudam a manter-se ativa e, por outro, mantêm viva a paixão pela escrita. “O Dan’Miminhos começou por ser uma brincadeira. Em novembro de 2020, como continuava desempregada, não podia planear prendas de Natal, mas não me sentia bem de não ter nada para oferecer. Então decidi pegar nas bases de costura que tenho da minha avó e, somando a uns vídeos “passo a passo” do YouTube, comecei a fazer scrunchies e fitas para oferecer no Natal”, conta. Depois de vários incentivos, começou a vender os artigos nas redes sociais e, desde então, passa grande parte das suas tardes “na costura”. Aliado a este trabalho manual, nasceu “umaespeciedeblogue”, um projeto que se baseia na publicação de textos, sempre em formato de carta. “Umas são escritas por mim direcionadas a sentimentos, situações e pessoas, outras são escritas por pessoas que me endereçam as cartas e me contam a sua história”. O objetivo do projeto “foi tentar tornar mais leve, de alguma forma, o tempo de confinamento e que as pessoas pudessem perceber que, apesar de tudo o que nos distingue enquanto seres humanos, os sentimentos são semelhantes”.

 

Tempo para a família Vs. dificuldade de concentração

Antes da pandemia, João Oliveira percorria todos os dias mais de 30 quilómetros entre a casa e o emprego: “Perdia pelo menos uma hora por dia em deslocações e, se apanhasse trânsito, ainda era pior”, explica o jornalista da área do desporto. Como o trabalho sempre foi exigente, havia semanas em que quase não via os filhos. “Quando saía de casa para trabalhar eles já estavam na escola e quando chegava a casa do trabalho já estavam a dormir. Eu levava-os à escola duas vezes por semana, de manhã, e era o único bocadinho, tirando o fim de semana, que passava com eles. Mas era tudo a correr”, revela.

Muitas vezes, ao sair para o trabalho, João olhava para o escritório que tinha em casa e pensava em “como gostaria de dar-lhe mais uso”. Com a pandemia e, com o teletrabalho ela trouxe, esse desejo realizou-se. Agora, além de trabalhar no seu espaço, rodeado pelos objetos que escolheu, vê os filhos todos os dias. “Às vezes ainda consigo ajudá-los a prepararem-se à hora de irem para a cama – vestir-lhes os pijamas, lavar-lhes os dentes, contar-lhes uma história”, descreve.

A situação, ainda assim, “não é a ideal”. “Quando os meus filhos chegam da escola, eu estou a trabalhar e, muitas vezes, não lhes posso dar grande atenção. Há dias em que se torna complicado com toda a algazarra – são crianças, é normal que façam barulho. E quando as escolas estavam fechadas ainda foi pior. A minha mulher tentava levá-los a dar um passeio, a sair, mesmo assim eu ia enlouquecendo. Agora já é mais calmo”, garante.

“Infelizmente o teletrabalho, para maior parte das pessoas, não foi tão bom em termos familiares como se poderia estar à espera”, pondera a especialista. Se houve pessoas que viram o seu trabalho diminuído e ganharam tempo extra para a família, “a verdade é que a maior parte das realidades foram o oposto”, com excesso de carga horária e todas as tarefas para gerir ao mesmo tempo. Além disso, “muitas crianças viram o tempo de qualidade com os seus pais ser roubado, bem como a possibilidade de poder brincar e correr livremente. Isso originou uma maior irritabilidade, maior apego e mais impaciência, levando a mais conflitos dentro do seio familiar”, esclarece Lisa Fonseca.

O mais importante nestes casos, defende a especialista, é que as famílias criem rotinas e espaços de convívio entre todos, “onde as atividades conjuntas servem para descompressão e, acima de tudo, que todos compreendam o espaço e as necessidades de cada um”.

No caso do jornalista desportivo, viver e trabalhar debaixo do mesmo teto está a criar alguma fadiga. Há alturas em que se sente “especialmente irritadiço”, reconhece. Até porque a pequena viagem anual que costumava realizar com a mulher não pôde realizar-se: “Por causa da pandemia tivemos de cancelar esses planos no ano passado e agora continuamos sem ter com quem deixar as crianças, porque há o receio de que possam contagiar os avós”, admite. Sem esses dias de ‘liberdade’, que permitiam ao casal “desanuviar um pouco”, “às tantas começa a criar-se algum cansaço de estar sempre em casa, a cumprir sempre as mesmas rotinas”, desabafa.