Regressado temporariamente ao meu país para receber a vacina, retomei, com alguns amigos, o hábito da ida ao cinema, depois do interregno imposto pela pandemia.
Sempre os filmes preencheram parte dos meus ócios – e dos deles – e foram motivo de conversas, de discussões mais ou menos profundas, mais ou menos prolongadas.
Recordo, quando novo, o empolgado tom de muitas dessas reflexões coletivas e os estados de alma que elas nos provocavam.
Quanto mais perturbante e vivo fosse o filme, mais ele servia para despertar as paixões morais, políticas ou ideológicas que nos dominavam e que conduziam então as nossas vidas à procura de um rumo pessoal e coletivo.
Nesse tempo, a violência ou o choque que as cenas de alguns dos filmes mostrassem levavam, sobretudo, a uma exaltação das nossas ideias, das nossas preocupações com a justiça ou injustiça vividas na sociedade, quer tais cenas cinematográficas reproduzissem o mundo que nos era mais próximo, quer elas mostrassem os mundos mais distantes, mas que, nem por isso, deixavam de, imperiosamente, influenciar o nosso.
A violência exibida como denúncia era, assim, mais do que o choque brutal que constituía em si mesma, um motivo de consciencialização e reforço das nossas convicções, das nossas lutas, das nossas revoltas.
De certo modo, era como se a revelação da violência e da injustiça dos que as sofriam permitisse escamotear a própria violência e a dor concreta e pessoal que era retratada em muitos dos filmes de ficção ou documentais que, avidamente, visionávamos.
Aconteceu que, neste retorno ao cinema, se encontravam em cena três filmes que reproduziam a violência mais próxima ou mais antiga do mundo em que o nosso também se insere.
Numa das salas passava um filme sobre a vida Billie Holiday onde, entre outos aspetos de injustiça e violência, se destacam a censura e as agressões de que ela era vítima quando cantava «Strange Fruits», a canção que uns dizem denunciar, sobretudo, o linchamento de negros americanos e outros dizem referir-se, também, ao enforcamento dos camponeses falidos pela crise económica dos anos vinte do século passado. Os frutos estranhos eram, precisamente, os cadáveres que pendiam dos ramos das árvores.
Na outra sala, passava o «Mauritano», filme em que se denuncia o indizível sistema americano de justiça e a forma como os prisoneiros eram (são?) tratados em Guantánamo.
Por fim, numa terceira sala, exibia-se o filme que decidimos ver: «Marighella – O Guerreiro».
Este conta a estória daquele resistente contra ditadura militar brasileira e mostra a forma bárbara como a polícia política brasileira lidava com os chamados «subversivos».
Dada a violência de algumas cenas, alguns dos que comigo foram ver o filme abandonaram a sala e outros taparam a cara para não ver as cenas mais impressionantes.
Muitos anos atrás, não o teriam feito e o visionamento de tais cenas violentas teria, apenas, fortalecido o seu ânimo de luta contra injustiça.
Impressionantes, ou não, teriam visto todas as cenas.
Isso aconteceu, como concluímos depois, porque a maneira como olhamos hoje para a violência retratada naquele filme se encontra já, em alguns de nós, desfocada da possibilidade próxima de ver vencido ou mudado o sistema que a gera ou propicia.
Por tal razão, essa violência e a frustração da razão dos que dela foram vítimas aparece só como pura violência e, portanto, como humanamente insuportável e não, no presente momento, como tónico de resistência, que era, como muitos de nós antes a teríamos visto.
No vazio evidente de respostas políticas para a violência, mais ou menos vigente e mais ou menos visível do sistema que – com nuances, por vezes importantes – governa o mundo, e continua a impor a injustiça, o visionamento das cenas de brutalidade como aquelas que foram tão bem interpretadas por Seu Jorge e filmadas por Wagner Moura – o realizador do filme – corre, portanto, o risco de não produzir o efeito que, porventura, era pretendido.
O problema, concluímos, não está, contudo, no filme, mas na maneira derrotada como muitos de nós olhamos, hoje, para o sacrifício das vítimas e para os resultados – ou falta deles – que ele foi capaz de produzir nas tão almejadas mudanças da sociedade.
É por causa desse enorme vazio que se encontra à nossa frente – e devido à aparente incapacidade para projetarmos, com esperança, um futuro de justiça e solidariedade humana efetiva para além dele – que a violência e a dor concreta que ela sempre produz puderam deixar, como antes acontecia, de constituir uma alavanca de vontade para mudança e se tornaram insuportáveis para muitos.
É o «princípio da esperança», de que falava ao filósofo alemão Ernst Bloch – que, para além do medo, movia os santos para o sacrifício em busca da felicidade no céu e os revolucionários na procura de uma sociedade mais justa na terra – que parece hoje faltar.
Encontrar, de novo, uma mensagem e uma perspetiva realista de mudança e de justiça para a sociedade, que seja hoje mobilizadora, é a única maneira de evitar que as imagens da violência que inundam os cinemas e as televisões, mais do que moverem a vontade dos homens, para lhes pôr fim, sirvam antes para os amedrontar e os continuar a dominar.