O pão é talvez o mais universal dos alimentos. Inventado de forma independente em diversos locais na sequência da domesticação de plantas como o trigo, o pão constitui um dos marcos das primeiras sociedades agrícolas. Apesar dos ingredientes permanecerem inalteráveis – farinha, água e levedura – o pão atual pouco se parece com o que era consumido há milhares de anos. Não obstante, alguns esforços têm sido feitos no sentido de recriar formas ancestrais de pão. Uma das histórias mais interessantes remete para a recriação do pão do Antigo Egito a partir de leveduras isoladas de artefactos arqueológicos com mais de 4500 anos.
Uma das especialidades mais singulares da Arqueologia dedica-se à procura e estudo de vestígios que permitam compreender a história da alimentação e o seu impacto em diversas culturas. Os achados em questão incluem sementes, restos de plantas e animais, ossos e dentes humanos, e resíduos impregnados em utensílios e vasos culinários. O interesse por esta Arqueologia da alimentação tem sido estimulado por análises químicas, biológicas e microscópicas inovadoras que extraem informações fidedignas de resíduos ínfimos. O estudo é especialmente desafiante quando direcionado a épocas parcas em registos como a idade da pedra.
Embora a existência de antecedentes pré-históricos seja provável, é consensual que a produção sistemática de pão terá surgido durante o Neolítico com a domesticação e cultivo em grande escala de plantas como o trigo. A cozedura deliberada de misturas de farinhas de trigo e de água permitiu às culturas neolíticas criar um alimento rico em carboidratos, portátil e compacto que rapidamente se tornou um dos sustentos básicos da humanidade. Escavações arqueológicas de sítios agrícolas na região de Karacadag, no sul da Turquia, permitiram encontrar vestígios de trigo domesticado com cerca de 12000 anos. Estudos genéticos complementares de trigos das zonas geográficas envolventes permitiram adicionalmente identificar uma planta selvagem de Karacadag como o antepassado genético comum de 68 variedades contemporâneas [1]. Estas evidências permitem supor que aquela região do próximo oriente terá sido um dos berços do pão de trigo atual.
Para além da farinha e água, a levedura Saccharomyces cerevisiae é um dos ingredientes principais do pão comum atual. Este fungo unicelular, que se alimenta de açúcares como aqueles presentes em cereais, é fundamental na produção de dois dos mais importantes produtos da Biotecnologia tradicional – o pão e a cerveja. No caso do pão, as leveduras naturalmente presentes em misturas de farinha e água fermentam os açúcares presentes na massa em dióxido de carbono e etanol. O pão cozido a partir desta massa levedada é assim mais leve e saboroso do que aquele que é feito a partir de massa não levedada. A descoberta da produção de pão levedado terá sido acidental, sendo difícil de precisar quando terá ocorrido. No entanto, os registos mais antigos do uso da levedura de padeiro remontam ao Antigo Egito.
Apesar dos ingredientes básicos permanecem inalteráveis desde tempos imemoriais, o pão de hoje pouco ou nada se parece com o que era consumido há milhares de anos. Uma das razões prende-se com o facto de que as variantes de trigo e as estirpes de leveduras atuais serem substancialmente diversas daquelas usadas na antiguidade. Não obstante, alguns esforços têm sido feitos no sentido de produzir variantes ancestrais de pão. Um dos casos mais interessantes envolve a recriação do pão comum no antigo Egito por Seamus Blackley, o criador e designer da consola de jogos Xbox em 2001 [2].
Para além do seu interesse na produção de vídeo jogos, Blackey é também um Egitólogo amador com interesse na produção artesanal de pão. Circunstancialmente, Blackey estabeleceu uma parceria com David Bowman, um biólogo da Universidade de Iowa, e Serena Love, uma arqueóloga da Universidade de Queensland, com o objetivo de recriar o pão da época dos faraós. Com a ajuda de Bowman e Love, Blackley começou por extrair amostras de levedura presente nos poros de potes cerâmicos pertencentes à coleção do Antigo Egito do Museu de Belas Artes de Boston. De seguida, e de forma surpreendente, Bowman conseguiu reviver as leveduras do seu estado de dormência de milhares anos. De forma interessante, estas só prosperaram em farinha de trigo Emmer, uma variante ancestral usada pelos egípcios do Antigo Egito. Finalmente, e seguindo instruções coligidas por Love a partir de arte antiga, hieróglifos e evidências arqueológicas, Blackey combinou variantes antigas de trigo com a levedura e reproduziu as técnicas de cozedura egípcias. O pão dos faraós ressuscitava assim dos mortos após 4500 anos de obscuridão [2].
A aplicação de metodologias científicas modernas na área da Arqueologia da alimentação tem permitido perscrutar o nosso passado gastronómico e reviver métodos e tecnologias culinárias tradicionais. O isolamento e caracterização genética de microrganismos a partir de resíduos de alimentos fermentados antigos, em particular, abre novas avenidas à arqueologia experimental e permite recrear alimentos e bebidas como o pão, a cerveja ou o vinho, usando os microrganismos originais [3]. Mais do que uma curiosidade científica, abre-se assim a porta à comercialização de toda uma gama de alimentos ancestrais.
[1] Heun, M. et al., Site of Einkorn wheat domestication identified by DNA fingerprinting, Science, 278, 1312-1314, 1997.
[3] Aouizerat, T., Isolation and characterization of live yeast cells from ancient vessels as a tool in Bio-Archaeology, mBio, 10, e00388-19, 2019.
Professor Catedrático Instituto Superior Técnico
miguelprazeres@tecnico.ulisboa.pt