Prescrições, com a verdade me enganas


A prescrição acontece por efeito da passagem do tempo, segundo prazos e regras que a Lei estabelece. E tem boas razões subjacentes. 


Pode algo ser verdade e mentira ao mesmo tempo? Pode. Um exemplo: algumas notícias sobre prescrição. Oiço ou leio bastantes vezes que “o processo x em recurso está em risco de prescrever” ou coisa similar (ou pior). O cidadão não experimentado nas lides processuais ouve ou lê e o que conclui? Que o processo está em risco de prescrever por causa do recurso, isto é, que foi o recurso que causou a “demora” que leva à prescrição, e conclui também (aliás dando uso à presunção de culpa que campeia sobre os “suspeitos do costume”, ou seja, os imputados que exercem as suas garantias, e os seus advogados) que “a corja” recorre para que tudo prescreva.

Dir-me-á alguém mais desatento a estas coisas, ou crente na neutralidade das notícias ou, então, a tentar fazer-me passar por parvo: “Então, mas olhe lá, não é verdade que o processo x em recurso está em risco de prescrever? Limitei-me a narrar factos.” E eu respondo, é verdade, sim, mas não é verdade necessariamente (e na maior parte das vezes não é) que a prescrição ocorra por causa do recurso. E essa relação causal está subentendida, quando não mesmo explícita, na notícia que agrega um facto (a prescrição) a outro (o recurso). Nada é neutro, e não me venham com histórias da carochinha, que já não tenho idade.

A prescrição acontece por efeito da passagem do tempo, segundo prazos e regras que a Lei estabelece. E tem boas razões subjacentes. E o processo consiste num conjunto de fases e de atos, que obedecem a princípios e normas, e o tempo que leva resulta da soma desses fases e atos. Suponhamos que o prazo máximo de prescrição num processo crime é de 10 anos.

O processo tem quatro fases, investigação, instrução, julgamento e recursos. Suponhamos que a primeira demora 7 anos, a segunda 1 ano, a terceira 2 anos e a quarta 1 ano. Na pendência de recurso, o processo prescreve. Ora, foi por causa do recurso? Não, foi por causa da soma de 7 anos, 1 ano, 2 anos e 1 ano. E pergunto ainda: está certa, e é séria, a ideia que a possível notícia que em cima citei inculca, isto é, de que “a culpa” da prescrição é do recurso? Não, é errada, não é séria, e é muito perigosa, porque pode conduzir a uma perceção de que não deve haver recursos (ou outras garantias) porque isso conduz à prescrição. Ou então conduz à tentação de tramitar os processos, a partir de um certo tempo de duração, às pressas, a trouxe-mouxe, sem verdadeiro respeito pelos princípios e pelas normas, por causa do “papão” da prescrição.

E isso quando “o problema” pode estar a montante, isto é, naqueles primeiros 7 anos ou coisa que o valha. E isto não é sério, nem é bom. Mas acontece. E acontece porquê? Porque se criou a ideia, que cresce, que “a culpa” da prescrição é das artimanhas de quem defende os imputados, e para isso muito contribuem títulos e notícias como o que em cima enunciei. (E sobre outros temas ou sobre certas personagens, podia arranjar títulos e notícias ainda “melhores”, e alguns sem pingo de verdade.)

Não gostam da prescrição? Sim senhor, vamos discutir (a sério) e se a maioria achar que é para mudar, muda-se. Mas não me tentem fazer de parvo com a bandeira dos títulos e das notícias neutros, nem tentem resolver a questão, indo no despejo o bebé com a água do banho, cortando fases e garantias essenciais no processo, porque, ai Jesus, o tempo está a correr e vem aí à prescrição, essa perversão que salva aqueles que se está mesmo a ver que são velhacos e culpados.

Faz-me isso lembrar uma espécie de medicina mandriona e hipócrita que, olhando para uma mão inchada, não procura saber as causas nem a terapêutica, corta a mão, e já está.

Prescrições, com a verdade me enganas


A prescrição acontece por efeito da passagem do tempo, segundo prazos e regras que a Lei estabelece. E tem boas razões subjacentes. 


Pode algo ser verdade e mentira ao mesmo tempo? Pode. Um exemplo: algumas notícias sobre prescrição. Oiço ou leio bastantes vezes que “o processo x em recurso está em risco de prescrever” ou coisa similar (ou pior). O cidadão não experimentado nas lides processuais ouve ou lê e o que conclui? Que o processo está em risco de prescrever por causa do recurso, isto é, que foi o recurso que causou a “demora” que leva à prescrição, e conclui também (aliás dando uso à presunção de culpa que campeia sobre os “suspeitos do costume”, ou seja, os imputados que exercem as suas garantias, e os seus advogados) que “a corja” recorre para que tudo prescreva.

Dir-me-á alguém mais desatento a estas coisas, ou crente na neutralidade das notícias ou, então, a tentar fazer-me passar por parvo: “Então, mas olhe lá, não é verdade que o processo x em recurso está em risco de prescrever? Limitei-me a narrar factos.” E eu respondo, é verdade, sim, mas não é verdade necessariamente (e na maior parte das vezes não é) que a prescrição ocorra por causa do recurso. E essa relação causal está subentendida, quando não mesmo explícita, na notícia que agrega um facto (a prescrição) a outro (o recurso). Nada é neutro, e não me venham com histórias da carochinha, que já não tenho idade.

A prescrição acontece por efeito da passagem do tempo, segundo prazos e regras que a Lei estabelece. E tem boas razões subjacentes. E o processo consiste num conjunto de fases e de atos, que obedecem a princípios e normas, e o tempo que leva resulta da soma desses fases e atos. Suponhamos que o prazo máximo de prescrição num processo crime é de 10 anos.

O processo tem quatro fases, investigação, instrução, julgamento e recursos. Suponhamos que a primeira demora 7 anos, a segunda 1 ano, a terceira 2 anos e a quarta 1 ano. Na pendência de recurso, o processo prescreve. Ora, foi por causa do recurso? Não, foi por causa da soma de 7 anos, 1 ano, 2 anos e 1 ano. E pergunto ainda: está certa, e é séria, a ideia que a possível notícia que em cima citei inculca, isto é, de que “a culpa” da prescrição é do recurso? Não, é errada, não é séria, e é muito perigosa, porque pode conduzir a uma perceção de que não deve haver recursos (ou outras garantias) porque isso conduz à prescrição. Ou então conduz à tentação de tramitar os processos, a partir de um certo tempo de duração, às pressas, a trouxe-mouxe, sem verdadeiro respeito pelos princípios e pelas normas, por causa do “papão” da prescrição.

E isso quando “o problema” pode estar a montante, isto é, naqueles primeiros 7 anos ou coisa que o valha. E isto não é sério, nem é bom. Mas acontece. E acontece porquê? Porque se criou a ideia, que cresce, que “a culpa” da prescrição é das artimanhas de quem defende os imputados, e para isso muito contribuem títulos e notícias como o que em cima enunciei. (E sobre outros temas ou sobre certas personagens, podia arranjar títulos e notícias ainda “melhores”, e alguns sem pingo de verdade.)

Não gostam da prescrição? Sim senhor, vamos discutir (a sério) e se a maioria achar que é para mudar, muda-se. Mas não me tentem fazer de parvo com a bandeira dos títulos e das notícias neutros, nem tentem resolver a questão, indo no despejo o bebé com a água do banho, cortando fases e garantias essenciais no processo, porque, ai Jesus, o tempo está a correr e vem aí à prescrição, essa perversão que salva aqueles que se está mesmo a ver que são velhacos e culpados.

Faz-me isso lembrar uma espécie de medicina mandriona e hipócrita que, olhando para uma mão inchada, não procura saber as causas nem a terapêutica, corta a mão, e já está.