No tempo da Taça dos Clubes Campeões Europeus, muito antes de ter nascido este elefante branco chamado Liga dos Campeões, encontrar uma final entre duas equipas do mesmo país era difícil. Impossível até! Para começar só tinham direito a participar na prova os campeões de cada país – nas duas primeiras edições nem isso; houve clubes chamados por convite -, acrescentando-se o vencedor da prova do ano anterior que tinha o direito de defender o seu título.
Com o Real Madrid a açambarcar taças atrás de taças, cinco de enfiada logo no começo, surgiram os primeiros combates entre irmãos falantes do castelhano, como foi o caso de um Real Madrid-Sevilha e de um Real Marid-Barcelona. Nenhum deles na final, entenda-se. E o segundo numa meia-final renhidíssima, na qual os catalães chumbaram os sonhos madrilenos da sexta para, em seguida, verem o seu próprio sonho ser abatido pelo Benfica, em Berna.Foi preciso esperar pela época de 1999-2000 para que dois clubes do mesmo país se apresentassem frente-a-frente na final.
O Destino deve ter tido mão no assunto e o jogo foi entre espanhóis, como se esperava desde os anos 60: Real Madrid e Valência foram os protagonistas, e a realeza levou a melhor por indiscutíveis 3-0. A Liga dos Campeões nasceu entretanto e estuporou completamente a relação de equilíbrio entre clubes dos países europeus. Hoje em dia, Espanha ou Inglaterra, só para citar os dois que dominam o topo das vitórias desta competição que tinha, antigamente, um charme irrepetível, apresentam-se com quatro clubes na Liga dos Campeões, o que permite que os endinheirados surjam com maior frequência na partida decisiva, e os endinheirados, como sabemos, são sempre os mesmos.
Repare-se ao ponto a que o charivari chegou: neste sábado, no Porto, Chelsea e Manchester City vão decidir qual dos dois ficará com o título de campeão europeu, sendo do domínio público que, na época passada, nenhum deles foi campeão de coisa alguma e, como tal, usurpam pura e simplesmente o lugar de campeões autênticos. Chamem-lhe Liga dos Campeões, e tal lhes dá na gana. Para muitos de nós é para o lado em que dormimos melhor, mas não queiram atirar-nos areia para os olhos como se estivéssemos em pleno deserto de Gobi.A bandalheira Claro que o que aqui fica publicado vincula apenas a opinião de quem assina a peça. Mas que a Liga dos Campeões começa a ser por demais conquistada por não-campeões, isso é um facto que não se desmente.
Depois desse tal confronto entre Real Madrid e Valência, disputado no Estádio de França, em Paris, as portas abriram-se às escâncaras para que outros encontros de irmãos proliferassem numa competição que fora, até pouco tempo antes, tão ciosa do seu elitismo. Não apenas encontros de irmãos, claro, mas também presenças e conquistas de gente que há anos e anos não sabia o que era o sabor de um título, tal e qual aconteceu com o Liverpool que, por duas vezes, foi campeão da Europa sem ter sido campeão inglês (esteve trinta anos em jejum em casa) – 2004-05 e 2018-19, perdendo entretanto duas finais, uma para o Milan (1-2 em 2006-07; outra para o Real Madrid, 1-3 em 2017-18).Aliás, logo na época seguinte, o Estádio Metropolitano de Madrid recebeu uma final absolutamente inglesa entre Liverpool e Tottenham (2-0) e a pergunta continua a pairar no ar como um espetro irritantemente aborrecido – mas eram campeões de quê, esses que disputaram o encontro decisivo da Liga dos Campeões??? Campeões só de nome? O regabofe estava enraizado.
Nada a fazer
Com este modelo competitivo, pantominices como esta não deixarão de acontecer com maior frequência. O Manchester City foi, por acaso, campeão de alguma coisa na época passada? E o Chelsea? Queiram ou não queiram os senhores poderosos da tão poderosa UEFA, a rebaldaria vai beneficiando a incompetência a partir do dia em que os terceiros e quartos classificados de Espanha, Alemanha, Itália ou Inglaterra têm o direito de lutarem por serem campeões da Europa. Isto ao mesmo tempo que verdadeiros campeões, nem que sejam da Arménia ou do Luxemburgo, ou outro qualquer país tão digno de respeito como os demais, não têm sequer acesso a uma prova que usa campeões no nome. Admiram-se depois os mentores desta fantochada que a Liga Europa não desperte o interesse de quem quer que seja e que apareçam clubes interessados – com todo o direito – em formar uma competição à parte, apenas reservadas àqueles que nos últimos anos têm sido os reis do continente.
Proíbe-se uma Superliga para não perder o cliente. Ou melhor, a Superliga já existe: é a Liga dos Campeões dos quartos-de-final para cima. Os que têm o atrevimento de se meterem pelo meio de tal luta de tubarões correm o risco – ou são mesmo condenados – ao enxovalho que se segue, e temos aí o FC Porto (o único atrevido português) para servir de exemplo com as suas dolorosas e incomodativas goleadas sofridas frente a Liverpool e Bayern de Munique, só para não irmos mais longe…Exemplos Se desta vez temos um Manchester City-Chelsea e há dois anos tivemos um Liverpool-Tottenham, o assunto não se resume a estas duas finais. Em 2002-03 foi a vez de os italianos fazerem figura de maiores dos maiores da Europa.
Em Old Trafford, depois de um italianíssimo empate (0-0), o Milan levou a taça para casa no desempate por grandes penalidades que derrotou a Juventus. Aquilo a que já tínhamos assistido na velha Taça UEFA – que recebia os segundos, terceiros ou quartos classificados dos campeonatos europeus, obedecendo-se aos rankings da altura, passava a fazer parte da nova ordem estabelecida na pomposa Champions League.Em 2007-08, em Moscovo, teve lugar a primeira final exclusivamente inglesa da Liga dos Campeões.
O empate foi pouco mais do que italianíssimo (1-1), mas o desempate por grandes penalidades entregou ao United a sua última Taça dos Campeões até agora. Sim, porque se a competição mudou de nome, o troféu mantém-se o mesmo e as letras que traz inscritas a prata na sua barriga bojuda não enganam ninguém – Coupe des Champions Européens, em francês como não podia deixar de ser já que foi inventada e posta em marcha pelos jornais L’Équipe e France Football.Em 2012-13, os alemães não quiseram ficar atrás dos seus rivais europeus e Bayern de Munique e Borussia de Dortmund dirimiram a questão no Estádio de Wembley, na única final entre alemães disputada até hoje – na Liga dos Campeões, repita-se, já tinha sucedido na Taça UEFA. O Bayern chegou a Londres favorito, cumpriu o seu dever, e saiu de lá com a taça depois de uma vitória por 2-1.Não foi preciso esperar muito para que os espanhóis voltassem ao carrossel das finais entre irmãos. Em Lisboa, no Estádio da Luz, no ano seguinte, Real e Atlético de Madrid fizeram ainda melhor do que juntar dois clubes do mesmo país no grande jogo de fecho da época – juntaram-se dois clubes da mesma cidade. Venceu o Real por 4-1, após prolongamento, mas nenhum dos dois se deu por satisfeito, pelos vistos. Dois anos mais tarde, em 2016, foi a vez de San Siro, em Milão, receber os dois clubes de Madrid na repetição do que acontecera em Lisboa. O confronto foi mais rijo ainda, terminou com 1-1, e os merengues derrotaram os colchoneros apenas nas grandes penalidades.
O futuro
Temos todos como mais do que certo que a final de sábado, no Porto, não será a última entre dois clubes do mesmo país. Como temos como absolutamente afirmativo que, vença quem vencer, a Inglaterra ficará mais próxima da Espanha em número de Taça dos Campeões conquistadas no total – somará 14, tendo a Espanha 18.A diferença aqui faz-se pela competitividade do futebol de cada país.
Os espanhóis só tiveram, até ao momento, dois clubes campeões da Europa, Real Madrid e Barcelona. Já a Inglaterra, em caso de vitória do City, ficará com seis campeões europeus das fronteiras para dentro (Liverpool, Manchester United, Chelsea, Nottingham Forest e Aston Villa já a têm), logo agora que as fronteiras com a Grande Ilha voltaram na sequência do tal de Brexit. Ah! “Rule Britannia! Britannia rule the waves”, como eles gostam de cantar.Alemanha e Itália têm três campeões europeus cada um, Bayern de Munique, Borussia Dortmund e Hamburgo, no primeiro caso, enquanto os italianos as dividem por Milan, Inter e Juventus, sendo o Milan o clube com mais Taça dos Campeões Europeus nas vitrinas a seguir ao Real Madrid – 7. Holanda e Portugal têm, equitativamente, dois campeões europeus cada um – Ajax e Feyenoord de um lado; Benfica e FC Porto do outro – mas os holandeses somam um total de seis taças contra quatro. Sobram quatro países, cada um com um triunfo: França (Marselha), Sérvia (Estrela Vermelha), Roménia (Steua Bucareste) e Escócia (Celtic). Um sublinhado especial para o Celtic que foi a primeira equipa não-latina a arrebatar a taça, também em Lisboa, no Estádio Nacional, vencendo o Inter por 2-1.
O tempo irá reforçar, certamente, a extraordinária distância que já está vincada entre os Quatro Gigantes e aqueles que se esforçam por manter-se o mais próximo possível das suas passadas de sete léguas. Para já, só o Paris Saint-Germain, na última época, pareceu estar próximo de abalar uma superioridade tão aborrecida que vale bocejos. Bocejos que se prolongam por toda a Europa, no futebol dividido entre o poder e a impotência. Uma clivagem que a invenção da Liga dos campeões tratou de acentuar. E, convenhamos, era mesmo esse o seu objetivo. Por isso, está tudo certo. Quem manda, manda! Os restantes obedecem. É a lei. Tanto no futebol como na vida…