Francisco Brines. Morreu o derradeiro hóspede da noite

Francisco Brines. Morreu o derradeiro hóspede da noite


O último prémio Cervantes, um dos maiores poetas espanhóis e aquele que apaga a luz e fecha a porta da Geração de 50, morreu num hospital de Gandía, aos 89 anos, dias depois de receber da mão dos reis o galardão.


A morte é apenas uma passagem mais funda, uma forma do texto dobrar a luz, trocar a deste mundo pela que emana de si mesmo. Há àqueles que não sabem impedir-se de afastar-se um pouco, lesados por uma incerta comoção, e tomar da vida o pulso, essa música calada capaz de nos derrubar se paramos a escutá-la, e que leva alguns a ensaiarem a sua despedida, numa cerimónia secreta e jubilosa, que nada tem de tétrico e é, sim, um sinal desse amor profundo às coisas da terra, à paixão que estas despertam em nós. O poeta espanhol Francisco Brines, desaparecido na noite da passada quinta-feira, criou uma obra de um rigor exemplar e de assumido pendor elegíaco, tomando, desde o primeiro livro, publicado aos 28 anos, esse desvio contemplativo. No seu livro de estreia “Las Brasas” (1960), o primeiro separador era “poemas da vida velha”, e tinha como epígrafe esta anotação: “O homem sabia que lhe restava muito pouco tempo e que sem fé a sua morte não daria frutos”.

Muitos parecem esquecer a razão porque uns poucos, ainda que de forma esparsa, insistem em compor versos, reter essas passagens que atravessam a morte, para magoá-la e também para que não seja tão definitiva como se diz. A razão, como lembrou o poeta e crítico Álvaro Valverde, é que, nesse jogo ao mesmo tempo calculado e espontâneo, autores como Brines nos estendem esses frutos que resistem pela sua necessidade, que nascem da compreensão de que é inevitável nomear para viver. A primeira reunião da obra completa do poeta, em 1974, surgiu já sob o título “Ensaio de uma despedida”, o mesmo escolhido em 1987 por José Bento quando apresentou ao leitor português uma espantosa antologia de Brines, com 79 poemas seleccionados dos livros publicados até então. Um ano depois, na introdução à sua antologia mais pessoal, o poeta explicava que o conjunto da sua obra, mesmo nos momentos em que aparece o cântico, não é outra coisa senão uma extensa elegia. Esse trabalho de luto exprime também um desejo de fixação da memória, e, no caso de Brines, a dor é uma outra linha com que coser para mais tarde as formas que o desejo espreitou. Nessa dádiva à posteridade, tantos dos seus versos transmitem a própria lição com que a vida nos amadurece, reforçando o ímpeto que nos liga ainda mais fundo a isto, dispostos a reter o gosto desses frutos que, de tão intensos, parecem ser eles a morder-nos a boca: “Amar o sonho rasgado da vida/ e, ainda que nos custe tanto, não maldizer/ aquele antigo engano do eterno”. 

No El País, o crítico Ángel L. Prieto de Paula lembrou um verso do poeta peruano César Vallejo, notando que Brines o poderia ter subscrito inteiramente: “Em suma, não tenho como expressar a minha vida senão através da minha morte”. No mesmo artigo, frisa que, embora tenha sido um poeta elegíaco, Brines não se entregou nos braços da tristeza que se limita a repassar memórias e perdas, e que a fugacidade ali “deriva de um canto pagão à existência, ao amor, à beleza e à poesia”. Por outro lado, Prieto de Paula afasta esta obra desse regime geral do confessionalismo, notando que Brines não se abisma no próprio umbigo pois os seus versos formulam um “juízo sobre a história e o devir humanos”. A este respeito, leiam-se os seguintes versos do poema El Caballero Dice su Muerte, do terceiro livro do poeta, “Palabras a la Oscuridad” (1966): “Como uma luz a carna apaga-se/ cinza sem calor, e o coração era uma pedra incandescente. A chuva/ cobre as distâncias, e uma névoa/ foi cegando os meus olhos. A memória/ oculta-se como um sol desordenado,/ e até ao olvido vão todas as fontes/ da vida. Um choro foi um vagido/ de solidão, e na minha impotência quis/ deitar-me sobre a terra./ As minhas forças, onde? Tornaram-se falsas/ como na alcova do amor. Vibram/ as mãos, e frenéticos os olhos/ olham a indiferença dos astros. (…) Morres de frio, pensamento. Quem/ te castiga com sombras?// E já fui o hóspede da noite, firmes/ eixos cruzei, e ao roçar pelas coisas estremece/ a luz, rompe-se o tempo. Criaturas/ esplendorosas, sonhos musicais,/ pedras com dobradiças de apagada prata,/ delira o peito acobardado, geme.”

“Este sim é o mais belo dos territórios… Mas esta terra é fugitiva.” Eis um verso que Brines destacou como epígrafe no meio da sua obra, ferindo páginas, de resto brancas, que separam as partes da obra, testando possíveis epitáfios. Eis outra tentativa: “Ao homem, por vezes, dói-lhe essa sombra que desconhece, e que está dentro dele. Sabe então quão fraco sustento é o corpo. Ama essa carne a sua sombra, porque é a isso que chama vida. E ama também o sopro que haverá de desfazê-lo para sempre, porque não existe outro destino.”

Foi o último autor distinguido com o prémio Cervantes, e um dia depois de ter recebido das mãos dos reis espanhóis o galardão em sua casa, em Oliva, Brines ingressou no hospital Francesc de Borja de Gandía para uma cirurgia a uma hérnia. Estava internado desde o dia 13, e morreu uma semana depois, aos 89 anos. Há muito que a sua saúde o impedia de deixar aquela casa de campo, um lugar fundamental na sua obra, e que fez com que tantos dos seus versos cheirassem ao extenso laranjal, e tivessem ainda vista sobre o mar Mediterrâneo e o maciço de Montgó. É umas mais nobres propriedades do munício de Oliva, em Valência, a propriedade de Elca, cuja mansão está a ser renovada para se encher de livros, a esplêndida biblioteca composta por mais de 30 mil volumes, dos quais tantos são edições valiosas, a colecção de toda uma vida, um legado que Brines quis colocar à disposição do público, como “homenagem à poesia, porque a poesia, além do aspecto estético, é um caminho bastante ilustrativo”, disse numa das últimas entrevistas que deu. A par dos versos, nascerá assim uma fundação com o nome do poeta, que espera assim que a sua voz e o encanto de que se sustentou comovam mais leitores.

Nascido naquele munício, em 1932, no seio de uma família de ricos empresários agrícolas, Brines estudou Direito nas universidades de Deusto, Valência e Salamanca, e Filosofia e Letras em Madrid, mas a carreira de estudos cairia para um distante segundo plano a partir do momento em que, na capital espanhola, ingressou nessa universidade cujo currículo é preenchido pelas largas derivas e investigações nocturnas, quando se ouve a arrebatadora canção dos corpos: “Abramos a janela/ entrem calor e noite,/ e que o ruído do mundo/ seja só ruído/ do prazer./ Que não há felicidade/ tão repetida e plena/ como passar a noite,/ romper a madrugada,/ com um corpo ardente./ Com um corpo escuro,/ de quem nada conheço/ senão a sua juventude.” A vocação dos versos chegou, assim, para desenhar esse lugar de sensações mais fortes ou distendidas, de distâncias medidas por uma certa dose de comoção, esse lugar discreto e misterioso como um grande espaço iluminado por um candeeiro de mesa-de-cabeceira. A semelhança do que acontece na poesia de Kaváfis, os chamados prazeres inferiores, essas paixões vulgares são decalcadas, por meio de alusões prenhes de sensualidade, de corpos vislumbrados, levantando-se da cama, deixando nos lençóis um cheiro que, com o passar dos anos, acaba por nos ensinar como esses encontros “se correspondem exactamente com a vida”. Em vez de concentração, há uma presença simultânea, um alcance quase histórico que a memória, decantada pela poesia, nos oferece. “São fímbrias de luz/ e à sua luz vêem-se olhos, coxas e cabelos,/ enquanto a sombra se extingue contra a sombra,/ e o repouso nos lençóis/ das fúrias do corpo/ é o agradecimento de quem há-de morrer,/ e sem pedir a vida, o ultrapassa/ até negar a morte miserável,/ a ferrugem dos corpos ainda vivos/ e as sombras já ocas dos mortos.”

Antes que os prémios tornassem muito clara a força dessa vocação, os pais de Brines, e sobretudo a mãe, ficaram desolados por ver o filho seguir esse desvio que leva à eternidade ou, na maioria dos casos, não leva a nada. O poeta diz que a mãe, embora fosse cúmplice das suas inquietações extravagâncias, como qualquer mãe, desejava o melhor para os filhos, e preferia que ele tivesse escolhido um rumo mais certo, um futuro que lhe trouxesse alguma segurança. Licenciou-se em Direito, mas nunca exerceu. Estudou História e Filologia, mas os versos fizeram dele um dos membros da Geração de 50, ao lado de poetas como Jaime Gil de Biedma, José Agustín Goytisolo, José Ángel Valente, Claudio Rodríguez ou José Manuel Caballero Bonald, de quem Brines além de amigo, foi vizinho por uns anos, e que morreu duas semanas antes dele, aos 94 anos. Era menos um movimento literário do que um bando de amigos que trilharam com uma confiança inexcedível novos rumos na poesia espanhola, de tal modo que, depois deles, não parecia mais possível que a poesia se afirmasse como outra coisa que não essa força que empurra o homem para regiões heróicas dentro do sentido e do esplendor com que nomeia e vive, a partir de uma solidão iluminada por outras, e que lhe permite levantar-se do cansaço da alma para ver raiar sobre a mesa, quando não sobre a terra, essa lâmina de luz que anima a desafiar-se a si mesmo para outra e outra batalha.

Os dois grandes mestres de Brines foram Luis Cernuda e Juan Ramón Jiménez, mas a sua paixão vitalista levava-o a entregar-se aos versos apenas como quem retempera as forças. Foi professor de literatura espanhola em Cambridge e passou um par de anos em Oxford, como leitor espanhol, numa experiência que partilhou com José Ángel Valente e Claudio Rodríguez, e que ficaria reflectida em boa parte dos poemas do livro “Palabras a la Oscuridad”. No ano 2001, foi nomeado membro da Real Academia Espanhola, mas demorou cinco anos a ler o discurso de ingresso, dedicado a Cernuda, tendo sofrido dois enfartes e sendo achado por outros problemas de saúde, numa altura em que decidiu regressar à casa da sua família. Quanto tomou essa decisão, de viver rodeado pelo laranjal, costumava brincar com os amigos dizendo-lhes que se tinha enfim retirado para morrer. Mas logo acrescentava que não tinha muita pressa, que continuaria a sua despedida com toda a calma. No seu último livro, “A Última Costa”, publicado em 1995, e traduzido integralmente por José Bento, que o fez publicar na Assírio & Alvim, dois anos depois, perto do fim, apresenta-nos o seu “Projecto de Vida Eterna”: “E depois de acabar, voltar ao mundo/ após uma curta eternidade, já sereno/ voltar de novo ao mundo, a este que sei,/ com uma repetida juventude, e junto a mim/ seu corpo como fora em sua idade de ouro/ perdida, e assim admitir que a vida é infindável/ como não pôde ser (agora já eterna),/ porque houve um adeus, e o tempo envelhecia/ não o tempo, que em si é sempre eterno,/ mas o que ele tocava: o mundo,/ e aquele que, por sabê-lo, mais sofria.”

Depois desse livro, este poeta que sempre se defendeu da prolixidade, apenas publicaria em antologias alguns inéditos, poucos, e chegou a pôr título a esse livro que já só admitia que pudesse surgir postumamente – “Donde muere la muerte” –, resistiu sempre a dá-lo por terminado. Tinha a sensação, dizia ele, que se o fizesse a morte viria buscá-lo. De entre as suas muitas despedidas, há uma que, de tão bela e perfeita, merece o ponto final do obituário, com esse balanço de Bassai e do Mar de Oliva, que persiste junto à casa de Elca, devolvendo os passos de Brines a um paraíso que não está fora do mundo, mas enraizado bem no meio da vida. “Alguém me deu um abraço de adeus definitivo num cais muito acre/ e busco nos espelhos, e arranho e não encontro/ esse que fui e que de mim morreu e é minha inexistência./ Sinto-o mais estranho que a mim mesmo/ quando, enfim já cego, anseie conhecer-me e o vazio seja tudo,/ e isto assim porque avisto um breve resto de sua luz ainda.// Sei que cheirei um jasmim uma tarde na infância e não existiu a tarde.”