A pirataria do ar tem uma longa história

A pirataria do ar tem uma longa história


Mesmo na época de ouro do desvio de aeronaves, raramente os Estados se envolviam diretamente, como fez a Bielorrússia. Os sequestros eram levado a cabo sobretudo por aventureiros, bandidos e resistentes, à procura de dinheiro, fama ou refúgio.


Num mundo cada vez mais global, mesmo os Estados mais marginalizados na arena internacional costumam respeitar as leis do tráfego aéreo. Provavelmente para não acabarem fechados aos seus vizinhos – como aconteceu à Bielorrússia, um Estado dominado pelo Presidente ditador Alexander Lukashenko, após desviar um avião da Ryanair, que ia da Grécia para a Lituânia, dizendo aos pilotos que havia uma bomba a bordo e colocando um caça MiG-29 a escoltá-los.

O resultado foi a detenção dos dissidentes que iam a bordo, o blogger Roman Protasevich e a sua namorada, Sofya Sapega. Para fúria da União Europeia, que avançou com sanções, proibindo a aviação bielorrussa de usar o seu espaço aéreo, pedindo às suas operadoras que evitem o país. 

“Pilotos de qualquer nacionalidade, mesmo quando voam para Caracas, Havana ou Pyongyang, não têm qualquer razão para acreditar que as instruções que recebem do chão são políticas ou enganadoras, ou com qualquer outro objetivo que não uma aterragem segura”, lembrou a jornalista Anne Applebaum, num artigo na Atlantic sobre o perigoso precedente criado. Contudo, se hoje em dia se vive uma espécie de paz no ar, é algo relativamente recente.

Os mais velhos certamente recordam que, nas décadas de 60 e 70, o desvio de aviões comerciais era uma ocorrência bizarramente comum. Mas mesmo então, raramente se envolviam abertamente Governos, em “pirataria patrocinada pelo Estado”, como fez a Bielorrússia, nas palavras do CEO da Ryanair, Michael O’Leary. Apesar de que, na época de ouro dos piratas do ar, muitos deles sabiam que podiam contar com asilo político mal aterrassem.

Hoje, pós-11 de Setembro, associamos mais rapidamente um sequestro no ar ao terrorismo e potencial massacre de massas. Mas à época, durante a Guerra Fria, o principal era a busca de riquezas, através de resgates, e sobretudo de refúgio. De um lado e do outro da Cortina de Ferro, havia um vaivém de piratas à procura de uma vida melhor, com pilotos a desviar voos da União Soviética e dos seus satélites, rumo à Europa Ocidental, e outros a tomarem aviões nos EUA, para fugir para Cuba – segundo dados da Administração Federal de Aviação (FAA, em inglês), só nos anos 60 mais de uma centena de aeronaves americanas foram desviadas.

Após o primeiro sequestro aéreo nos EUA – levado a cabo em 1961, no aeroporto de Miami, por Antulio Ramirez Ortiz, um porto-riquenho armado com uma faca de carne, que dizia ter sido contratado para assassinar Fidel Castro, mas queria avisá-lo – inaugurou-se um período em que, no pico, em média se desviava um avião americano a cada seis dias, chegando a haver vários por dia.

Era tão frequente que se oferecia mapas das Caraíbas e guias de espanhol aos pilotos americanos, foi estabelecida uma linha direta entre os controladores de Miami e Havana, chegando-se a propor criar uma réplica deste aeroporto cubano na Florida, para enganar piratas do ar, escreveu Brendan Koerner, no seu livro The Skies Belong To Us: Love and Terror in the Golden Age of Hijacking. “Ao tomar uma avião quando cruzava a fronteira mais exótica da nação, um pirata sozinho podia ganhar uma audiência de milhões”, explicou Koerner, ao Washington Post. “Não havia maneira mais espetacular para os marginalizados sentirem a adrenalina do poder”. 

Outros até conseguiam ficar ricos com a aventura, como pode ter sido o caso de DB Cooper, cognome de um dos mais famosos piratas do ar, cuja verdadeira identidade nunca foi descoberta. Em 1971, entrou num voo da Northwest Orient Airlines, que ia de Portland, no Oregon, rumo a Seattle. Sentou-se, pediu um whisky, acendeu um cigarro – sim, podia-se fumar – e passou um recado a uma hospedeira, onde se lia que tinha uma bomba na mala. Queria 200 mil dólares, equivalente a mais de 1,3 milhões de dólares atuais, e um paraquedas.

Após uma paragem no aeroporto de Seattle, para o FBI lhe entregar o dinheiro e este libertasse os passageiros, o avião levantou voo de novo, com o piloto, rumo à Cidade do México. Quando sobrevoava as florestas a sudoeste de Washington, DB Cooper conseguiu abrir as portas do Boeing 727 e saltou, sem que nunca mais fosse visto – o principal suspeito do caso, Sheridan Peterson, um veterano do Vietname, descrito como “charmoso” por um agente do FBI, ao Oregonian, morreu em fevereiro, aos 94 anos. 

Mesmo Portugal, que à época estava nas mãos do Estado Novo, também teve desvio de aviões, em particular o caso do Super-Constellation “Mouzinho de Albuquerque”, da TAP, levado a cabo por resistentes contra a ditadura, em 1961, num voo entre Casablanca, em Marrocos, e Lisboa. O grupo de ação, composto por Amândio Silva, Camilo Mortágua, Fernando Vasconcelos, João Martins, Maria Helena Vidal e Hermínio da Palma Inácio, numa operação pensada por Henrique Galvão, apanhou o regime salazarista desprevenido, entrando armado e tomando o avião, conseguindo pelo meio lançar milhares de panfletos sobre Portugal, antes de aterrar em Tânger. 

Nada de pânico Até ao início da década de 70, os sequestros no ar não eram propriamente uma prioridade das autoridades. Normalmente, o resultado era uma inconveniência para os passageiros, que podiam ter de passar uma noite inesperada num hotel cubano, a beber mojitos, ou a comprar jeans e coca-cola na Europa Ocidental. “Não entre em pânico”, apelava um guia sobre como lidar com sequestros da Times, datado de 1968, onde se referia que alguns piratas ficavam na amena cavaqueira com os passageiros, partilhavam balas como souvenir ou ofereciam rodadas de bebidas.
Contudo, rapidamente os movimentos como a Organização pela Libertação da Palestina (PLO) se aperceberam do seu potencial publicitário desdobrando-se numa onda de sequestros e despertando a ira das autoridades.

Foi só aí que a Organização da Aviação Civil Internacional, uma agência das Nações Unidas, passou a requerer que todos os passageiros passassem por um detetor de metais e as bagagens por um raio-X, para impedir a entrada de armas a bordo.

Houve de imediato uma quebra nos sequestros no ar, mas não chegou para impedir a explosão do Pan Am flight 103, sobre Lockerbie, na Escócia em 1988, matando 258 pessoas, numa atentado cometido com uma bomba no porão, produzida e colocada por agentes secretos líbios, às ordens do coronel Muammar al-Gaddafi. E inaugurando a era de terror no ar como a conhecemos, em que as regras de segurança na aviação se tornaram um assunto quase sacro-santo entre nações – até ao recente desvio de um avião pela Bielorrússia, que certamente ainda fará correr muita tinta.