A cena do ódio


Israel, alegando a defesa do seu território, tem ocupado áreas que foram atribuídas internacionalmente ao Estado palestino – ainda uma miragem – perante uma comunidade internacional impotente e, em muitos casos, colaborante.


“O Meu ódio é Dilúvio Universal, sem Arcas de Noé, só Dilúvio Universal! E mais Universal ainda: Sempre a crescer, sempre a subir… até apagar o Sol!” 

Almada Negreiros, A cena do ódio (“Foi escrito durante os três dias e as três noites que durou a revolução de 14 de Maio de 1915”)

Almada Negreiros escreveu este texto genial e brutal de uma assentada, durante os três dias que durou a revolução que derrubou a ditadura de Pimenta de Castro, sendo uma das mais violentas da curta história da primeira República, com cerca de 200 mortos e um milhar de feridos.
Lembrei-me dele quando via e lia as notícias sobre o recrudescer do conflito entre israelitas e palestinos, com imagens de enorme violência dos bombardeamentos de Gaza, em mais uma explosão do ódio que divide irremediavelmente dois povos.

As raízes deste ódio são profundas e mesmo anteriores à fundação do Estado de Israel. 

Os historiadores apontam o ano de 1929 como aquele que marca o fim do convívio pacífico entre as comunidades muçulmana e judaica, quando um conflito sobre o acesso ao Muro das Lamentações causou centenas de mortos dos dois lados. Foi o fim dos “irmãos palestinos”, como se consideravam até aí os dois povos. 

A partir daí, tornaram-se inimigos mortais. 

A criação do Estado de Israel, em 1948, originou um conflito com os estados árabes vizinhos, que durou várias décadas e que, com o correr dos anos, com a superioridade militar de Israel cada vez mais notória e com o apoio expresso dos Estados Unidos e a complacência do mundo ocidental, acabou por se centrar num conflito entre judeus e palestinos, estes últimos divididos entre dois territórios descontínuos – Gaza e Cisjordânia, com autoridades diferentes, uma delas radical, o Hamas, que controla Gaza.

Israel, alegando a defesa do seu território, tem ocupado áreas que foram atribuídas internacionalmente ao Estado palestino – ainda uma miragem – perante uma comunidade internacional impotente e, em muitos casos, colaborante.

Num conflito sem fim à vista, com o ódio crescente e a violência que lhe está inerente, o texto de Almada permanece, infelizmente, atual:

“Tu consegues ser cada vez mais besta
e a este progresso chamas Civilização!
Vai vivendo a bestialidade na Noite dos meus olhos,
vai inchando a tua ambição-toiro
‘té que a barriga te rebente rã.”

Jornalista