Morreu Franco Battiato, o músico italiano que engravidou a pop de uma vida mutante e imortal

Morreu Franco Battiato, o músico italiano que engravidou a pop de uma vida mutante e imortal


Retirado há uns anos da vida pública, sofrendo da doença de Alzheimer, este compositor que nunca se satisfez com um género e soube miscigenar linguagens e influências numa vastíssima obra musical, morreu ontem, aos 76 anos.


A canção pop é o soneto do século XX. É uma fórmula brevíssima e entranhável, que deve combinar o embalo contagiante com um brilho que, visto mais de perto, é conseguido espalhando vidro moído, algo cortante e contundente, uma espécie de receita de possessão demónica que dura pouco tempo. É um molde artístico que deve muito ao domínio avassalador da cultura anglo-saxónica, mas cuja influencia é demasiado profunda para lhe serem definidos fronteiras ou limites. Já o soneto, de origem italiana, coroou o lirismo renascentista, e é um dos emblemas mais persistentes da alta cultura, ao passo que este moderno rombo sonoro no casco do nosso juízo, é conseguido, normalmente, em três minutos ou pouco mais, e conquista as sinapses cerebrais exigindo a audição repetitiva para aplacar a sua maldição, e teve em Itália um cultor fenomenal nas últimas décadas, um músico de um ecletismo espantoso, que soube explorar a receita, infundir-lhe esses elementos inquietantes que tornam a sua digestão um processo tão difícil, enigmático, embora a apreciação seja tão fácil. O cantor e compositor Franco Battiato soube cavalgar essas melodias ligeiras e entretecer nelas essa razão digressiva, buscando apoio na tradição popular, nesses venenos que se tomam pelo ouvido e que afinam o circuito emocional, dando uma outra espessura às nossas próprias experiências mais íntimas. Este músico siciliano que é celebrado por ter rasgado as costuras que dividiam a alta e a baixa cultura, tendo sido o primeiro artista italiano a vender um milhão de discos em Itália, com La voce del padrone (1981), morreu ontem, aos 76 anos, por causas que a família não quis avançar. Desde que se retirou da vida pública, há três anos, que o seu estado de saúde alimentava rumores, e ainda que tenha feito por o esconder, sabia-se que era afligido pela doença de Alzheimer.

Vivia retirado na sua villa de Milo, na ilha onde nasceu. E diz-nos o diário espanhol El Mundo que era como um refúgio e um santuário, uma espécie de castelo digno de uma figura mítica, inserto numa paisagem de lava volcânica nas encostas do Etna, era ali que se ia despedindo calmamente, recebendo amigos, estando rodeado de livros, de discos, de desenhos e de quadros, numa arquitectura de madeiras nobres espelhando o seu universo, e que tinha até uma capela. Era um desses homens de uma fé um tanto vaga, sendo católico, acreditava na imortalidade humana e na reencarnação, um artista que tinha o seu trunfo principal nessa imodesta crença no poder de transição que liga as coisas na composição deste mundo. Além de músico, era escritor, guionista, e pintava usando o pseudónimo Suphan Barzani. Em suma, com uma carreira que se estendeu por mais de cinco décadas, Battiato galgava tudo o que fossem cercas e fossos com uma exuberância muito própria, o que fez dele um criador lendário, que transplantou órgãos entre todo o tipo de géneros musicais, operando de forma original entre linguagens tão variadas como o rock progressivo, a electrónica, o minimalismo, o folclore e até a música contemporânea e de vanguarda. Assim, não só o seu público era absurdamente heterogéneo, como, no êxito que alcançou além-fronteiras, tornou-se um autor de culto admirado por artistas como David Byrne, John Cale ou Brian Eno.

Nascido a 23 de março de 1945 em Riposto, na província siciliana de Catânia, Battiato perdeu o pai ainda na adolescência, o que viria a ser decisivo no extremo afecto que o ligava à mãe, que nunca deixou de recordar depois da sua morte, em 1994. A sua devoção filial estendeu raízes também pela cultura popular italiana, e este homem que nunca se casou e nunca teve filhos, cultivou um círculo de amizades duradouras que foi como uma irmandade nesse ciclo de descoberta e criação incessante.

Foi em 1964, que ele e a mãe se mudaram para Roma, e ali começou a gravar as primeiras canções, mas só quando chegou a Milão, três anos mais tarde, é que a sua carreira zarpou, tendo então conquistado uma posição na cena artística, estabelecendo relação frutuosas com outros músicos, e, se nunca foi um intérprete de grande virtude, tinha a fome e a audácia, sendo-lhe reconhecido um dom intuitivo e uma capacidade de armar as velas e colher nos ventos essas indicações que poucos se mostram capazes de decifrar. Foi assim que o seu estilo se tornou um estômago imenso, capaz de ir do “pop à psicodelia, e da psicodelia à estratosfera, sempre com uma voraz atitude experimental”, como regista o El Mundo.

Nas décadas de 70 e 80, Battiato lançou campanhas sucessivas na cena musical, gravando um álbum por ano e compondo para outros intérpretes, fazendo de tudo na cena musical, e sempre deixando uma marca, um selo de originalidade, com uma produção avassaladora e que não era apenas variada, mas que combinava referências musicais e artísticas imprevistas, mesmo nas letras das suas canções, que podiam roubar ou dialogar com as obras de escritores como Huxley e Proust, ou com o espírito sagaz e provocador de Duchamp, mantendo também ligações profundas com outras figuras mais obscuras, como o místico arménio George Ivanovi Gurdjieff. Entre as suas inúmeras influências está também o magnetismo dodecafónico de Karlheinz Stockhausen, de quem viria a tornar-se amigo, indo ao ponto de aprendeu a tocar violino por sugestão do compositor alemão. A sua obra tem, por isso, algo de aventura expedicionária, e nas ousadas incursões que foi fazendo, recusando-se a acatar uma orientação destinada meramente ao sucesso comercial, teve os seus cúmplices habituais como o violinista Giusto Pio, o produtor Angelo Carrara, os cantores Giuni Russo e Mino di Martino, o músico Francisco Messina e o compositor Roberto Cacciapaglia, entre outros. Mesmo no que toca à escrita, foi-se sempre fazendo um discípulo, e tinha nos filósofos Manlio Sgalambo e Heni Thomasson dois mestres, que escreveram letras para ele. Em breve, Battiato desenharia a sua própria constelação, um regime enredante que fez dele um astro mas de uma natureza impossível de fixar como um ponto candente no céu, antes desorganizando e desdenhando de tantas tendências, desde o punk, à nova vaga italiana, alguém que tinha à sua volta não um culto mas uma série deles.

Sem complexos de espécie nenhuma, triunfou na pop com canções mais românticas ou existenciais, ganhou um San Remo, cantou na Eurovisão em 1984, gravou 30 álbuns de estúdio, arriscando utilizar toda a sorte de inovações da electrónica, os sintetizadores que perderam tantos músicos como as trips de ácido levaram à perdição jovens na revolução do amor. E se em Portugal é praticamente desconhecido, o sucesso comercial que conquistou em Itália depressa sacudiria outros países europeus, incluindo Espanha, onde Battiato penetrou a barreira desse povo duro de ouvido com versões em castelhano dos seus principais êxitos. E até à primeira década deste século não deixou de soprar no balão da canção pop o seu hálito ébrio e incansável na busca de variações, inclemente com as limitações que se iam impondo como tendências, compondo também para o cinema, e indo ao ponto de dirigir dois filmes, Perdutoamor (2003) y Musikanten (2006).

Morreu depois de ter-se já transferido para uma morada nas encostas do paraíso, acabando por se consagrar ao silêncio, depois de tantas pedradas ter lançado no charco sonoro em que vamos chapinhando. A sua pontaria clamorosa ganhou, assim, um reverso idílico, encontrando a veemência de Deus no seu livro de palavras silenciosas. Este homem que evitava falar de si, que respondia com evasivas e se servia do humor para não ser indelicado, que reservava a sua intimidade a tão poucos, além de vegan, dizia que passeava pelas ruas com o cuidado de não pisar uma formiga, assumindo-se como cristão, mas mostrando essa curiosidade espiritual capaz de partir o pão com os crentes de outras formas de buscar o sentido. A 17 de setembro de 2017, no teatro romano de Catânia, onde se tinha estreado tantas décadas antes, deu o seu concerto final. Dois anos antes, numa actuação em Bari, sofreu uma rotura do fémur do qual nunca recuperou inteiramente. Depois de tanto ter dado à música, deixou que a sala se esvaziasse, e ficou para descobrir o último, o mais limpo dos silêncios.