Uma autobiografia para uso exclusivo de leitores que não fingem que tudo é aceitável, que tudo está normal, que tudo vai ficar bem. Uma autobiografia para uso exclusivo de leitores que se engasgam com a suposta normalidade, que não se deixam emaranhar nas maléficas e desumanas teias convencionais que ainda nos continuam a ensombrar.
Editado pela Relógio D’Água em novembro de 2018, com tradução de Ana Falcão Bastos, neste livro, a autora duas vezes finalista do Man Booker Prize divide-o estruturalmente em quatro partes: Objetivo Político, Impulso Histórico, Puro Egoísmo e Entusiasmo Estético.
Perante este título somos levados imediatamente a pensar em todas as coisas que não queremos saber. O que é que não queremos saber afinal? Não queremos saber de perseguições, de maus tratos, humilhação, intolerância, tortura, descriminação. Não queremos saber de desigualdade. Não queremos a deriva ou o desprezo numa sociedade insuflada de medo, injustiça e ódio.
Pois bem, tudo que Levy não queria saber escreveu aos oito anos com uma esferográfica às cinco da manhã de um qualquer dia do ano de 64 em Joanesburgo. Eram nove coisas.
Não queria saber que o pai tinha desaparecido. O seu pai estava preso na Prisão Central de Pretória por motivos políticos. Era amigo de Nelson Mandela, que também estava condenado a prisão perpétua, mas em Robben Island. Deborah não queria saber de Thandiwe a chorar (a filha da sua adorada ama e empregada negra Maria que tomava conta de Levy e do seu irmão Sam); não queria saber do buraco na cabeça do seu amigo Piet; dos dedos do amigo Joseph que foram arrancados por um cão; de Mr. Sinclair (o diretor do seu colégio) lhe ter batido nas pernas; das melancias que, entretanto, tinham crescido enquanto ela estava longe de casa entregue aos cuidados da madrinha Dory. Não queria saber que a Maria e a mãe estavam longe; que a irmã Joan talvez não acreditasse em Deus e que o pássaro da sua madrinha, o Billy Boy estava atrás das grades, tal como o seu pai, que só cinco anos mais tarde voltaria a reencontrar.
São muitas as imagens e metáforas poéticas e inspiradoras que atravessam esta história. O pássaro Billy Boy será uma delas. O boneco de neve no jardim junto ao pessegueiro que Deborah fez aos cinco anos com o pai antes de ser capturado. As placas espalhadas por Joanesburgo alusivas ao Apartheid, os tubarões brancos, o trocadilho do Sistema Societal em contraponto como o Sistema Esquelético pendurado atrás da porta da casa de banho. As escadas rolantes, ou as tampas do mel, do ketchup ou da manteiga de amendoim sempre deslocadas dos respetivos frascos. “Tal como nós, as tampas não tinham sítio. Eu nascera num país e crescia noutro, mas não sabia bem a qual pertencia. E mais uma coisa, que não queria saber, mas sabia. Pôr uma tampa em qualquer coisa era como fingir que os nossos pais estavam outra vez juntos, ligados um ao outro e não separados”.
São imagens na maioria circulares e alusivas ao seu passado familiar, ao seu exílio, às suas dúvidas existenciais, ao Apartheid, mas também à submissão do feminino. Levy apresenta-nos um feminino de joelhos, um feminino desconfortável, calejado, dorido. “O subúrbio da feminilidade não é um bom sítio para viver”. Não é. Nunca foi. Talvez algum dia o venha a ser. Ou não. Mas de uma coisa não restarão dúvidas: este subúrbio permanece esquelético aos olhos dos homens. Esquelético, néscio, inapto.
São imagens e metáforas que se filtram nas entrelinhas, que se injetam aos pedregulhos nas nossas artérias. São imagens hermafroditas, escorregadias, traiçoeiras, difíceis de escamar. Mas Levy amanha-as e consegue escamá-las em movimentos certeiros, lapidados e uniformes. Não com a face cega da faca, nunca, mas sim com a lâmina de cada terminação nervosa das suas palavras. É no ralo, pela banca abaixo que nos sentimos esvair com elas. Coladas a elas. Porque mesmo que não seja fácil, só no ralo impúdico e sarnento da sociedade poderemos provar de que espécie de escamas somos feitos.
“É esgotante uma mulher aprender como se há de tornar um sujeito, e é bastante duro aprender como se há de tornar escritora”.
O seu percurso literário, bem como o conceito de família; o divórcio dos pais; a casa; o racismo (“Se fazemos mal a outras pessoas, não nos sentimos seguros”); a infância na África do Sul; a partida para Inglaterra; a viagem a Maiorca; a religião; o universo das mulheres escritoras; o escrutínio do feminino pelo óculo das mulheres escritoras ou a maternidade são temas que servem de objeto de estudo e escudo a Levy neste livro. “A Mãe era A Mulher que o mundo inteiro imaginara para a morte. Era muito difícil modificar a fantasia nostálgica do mundo sobre o nosso objetivo na vida. Era muito difícil modificar a fantasia nostálgica do mundo sobre o nosso objetivo na vida. O problema era que também nós tínhamos toda a espécie de ideias extravagantes sobre o que devia ‘ser’ uma Mãe e o desejo de não desapontar ninguém era uma maldição que pesava sobre nós. Ainda não compreendíamos totalmente que a Mãe, tal como era imaginada e politizada pelo Sistema Societal, era uma ilusão. O mundo amava mais a ilusão do que amava a mãe.”
Maldição e ilusão. Talvez as palavras mais chocantes neste parágrafo relacionado com a maternidade. Chocantes, mas verdadeiras. Abruptas, mas autênticas apenas e porque a maternidade é um floreado, uma moldura, um polvo. Não há como pensar numa mãe polvo sem pensar no poema “O Sorriso Louco Das mães” de Herberto Hélder. “E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos, / e atiram-se, através deles, como jatos para fora da terra. // E os filhos mergulham em escafandros no interior de muitas águas, / e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos e na agudeza de toda a sua vida.”
O leitor de Levy também mergulhará em escafandro no interior da sua obra, com a diferença que terá de vir muitas vezes à tona para se certificar que ainda respira.
Num mundo em que a maternidade se torna mais próxima de uma ostentação ou um bem de consumo impingido nas redes sociais, um filho é encarado pelos media como um Lamborghini, um Bugatti ou um push-up numa hierarquia social desestruturada, com a diferença que segundo Levy “A mãe é uma prisioneira dentro da sua própria carne. Não consegue sair de lá”.
É este o esqueleto societal, o ‘neopatriarcado do sec XXI’ de que a autora nos fala. É este o modelo no qual a mulher e a mãe têm de se articular. Articular e superar. Sem drama. As duas têm que ser uma. Intransigentes, implacáveis, mas delicadas. Multifacetadas, humildes, mas sensuais. Ponderadas, incansáveis, completas, íntegras, disponíveis, proactivas. Proactivas, objetivas, mas maternais. Maternais, mas libidinosas. Libidinosas e selvagens, mas santificadas. Santificadas, mas nunca castradoras. “Tínhamos de ser Mulheres Modernas Fortes embora estivéssemos sujeitas a todo o tipo de humilhações, tanto económicas como domésticas. (…) Começava a tornar-se evidente para mim que a Maternidade era uma instituição engendrada pela consciência masculina”.
Levy no discorrer da narrativa vai convocando diferentes perspetivas que adensam a sua dissertação sobre esta visão do feminino. Resgata por isso personagens femininos de García Márquez ou Georges Sand e excertos de A Vida Material (1987) de Duras, A Paixão Maternal (2005) de Julia Kristeva, A Força das Coisas (1963) de Beavoir, Virginia Woolf com Um Quarto Que Seja Seu (1929) bem como da poeta e ensaísta americana Adrienne Rich (1929-2012). A autora do livro de poesia Instantâneos de uma nora, tal como Levy, também defendia que na verdade a nossa sociedade continua a ser um sistema dominado pelos homens.
Mas, e o que fazer agora? “O que fazemos com as coisas que não queremos saber?” Aceitamo-las de cabeça baixa com as mãos erguidas para o céu? E depois? “Qual seria a sensação de comprar um bilhete e de viajar até à aceitação, de a cumprimentar e de lhe apertar a mão, de entrelaçar os meus dedos nos dela e de caminhar de mão dada com ela todos os dias?”