Completam em 2021 duzentos e noventa anos sobre a assinatura do alvará régio de D. João V, documento que deu início à obra do Aqueduto das Águas Livres.
A imponência deste magnífico monumento confere-lhe um lugar de destaque na nossa história. Imponente pelos seus cinquenta e oito quilómetros de extensão, pela resistência, pela perfeição matemática, pelo grande arco em ogiva – o maior do mundo com 65 metros de altura. Obra de engenharia notável.
Ao contemplá-lo em presença, sinto-me viajar pelas felizes e familiares memórias da minha infância. Ficava fascinado sempre que passava por baixo dele, era como se atravessasse um portal mágico que separava duas realidades do meu tempo de menino – a casa dos fins de semana da casa onde se desenvolviam as minhas atividades semanais.
Aquele cenário inocente e infantil foi perturbado quando me contaram a história de Diogo Alves, um homem que cometeu um conjunto impressionante de assassinatos na cidade de Lisboa. Os alvos eram pessoas solitárias que atravessavam o aqueduto no intuito de se ligarem à cidade. Sabemos que Diogo Alves, feito o assalto, atirava as suas vítimas das galerias do aqueduto, para que não pudessem denunciá-lo. Durante algum tempo julgou-se haver uma onda de suicídios. Todavia, juntando a crueldade deste homem a outras atitudes reprováveis, comprovou-se a sua responsabilidade e o povo passou a conhecê-lo como “O Pancada”.
Conta-se que depois destes crimes terem sido cometidos, o trajeto pedonal foi encerrado ao público por questões de segurança e sabe-se que o criminoso acabou por ser condenado. Diogo Alves ficou para a história como o último condenado à morte em Portugal.
A comunidade científica da altura decidiu investigar a sua cabeça depois de morto. O seu cérebro foi estudado, queriam descobrir alguma pista que indiciasse a origem de tão cruel comportamento. Contudo, a análise não foi bem-sucedida.
Ainda hoje a cabeça do condenado se encontra preservada num frasco, perpetuando a imagem de tão ilustre senhor.
Dos génios que foram capazes de concretizar o aqueduto – dos engenheiros aos pedreiros – ninguém estudou a origem da genialidade. Por isso, senti-me por momentos tentado a pensar no quão injusta pode ser a história que tantas vezes perpetua a memória dos maus e quase sempre esquece os bons. Porém, em breve cheguei a uma conclusão: se do assassino restou um pedaço do corpo, dos génios permanece a obra.
Esta grande obra simboliza a perfeição a que a humanidade é chamada. No dia em que soubermos ser pedras vivas, talvez sejamos capazes de edificar em nós uma obra que alcance as alturas. Quando tudo passar, quando já não restar homem nem mulher, talvez sejamos recordados pelo que construímos.
Professor e investigador