Onde vai um, vão todos


Como é que José Sócrates podia ter feito tudo o que fez – e fez debaixo dos nossos olhos – sem a participação activa, conivência, cumplicidade e ajuda empenhada, dos seus ministros, deputados e parafernália vária que rodeia um Governo e uma maioria absoluta?


Já tanta gente escreveu textos sobre o caso Sócrates que pode parecer um desperdício de tempo, papel e tinta, escrever mais um.

O que me anima não é fazer mais uma análise da decisão instrutória do juiz Ivo Rosa. Não sou especialista de Direito ou processo penal e acredito que esse juiz saberá mais do que eu sobre essa matéria. A questão que quero tratar é bem anterior quer à investigação, quer à acusação e, lamento, mas terá de ser num tom bem ácido porque se passaram todos estes anos e nada aconteceu.

Se nos lembrarmos, o ex-primeiro-ministro foi suspeito de ter auxiliado o ex-presidente do BES, Ricardo Salgado, a impedir uma opa da Sonae sobre a PT e de ter facilitado a compra pela PT de uma participação na OI e ainda de ter auxiliado a construtora Lena a ganhar um concurso para fornecimento de milhares de casas pré-fabricadas ao Governo da Venezuela e várias outras coisas, entre as quais concursos para as construções escolares.

Estes actos, que o Ministério público sustenta terem sido determinados por luvas pagas pelos interessados a um amigo de Sócrates, consistiriam em corrupção para a prática de determinados actos.

Se nos lembrarmos, todo o demasiadamente longo consulado Sócrates, foi um denso emaranhado de situações dúbias, negócios obscuros, iniciativas ruinosas do estado português, projectos megalómanos de TGV’s, aeroportos, choques tecnológicos, ataques à liberdade da imprensa, perseguição de críticos e de adversários políticos, tentativas de compra de grupos de média para os alinhar com os interesses do Governo, e por aí fora, num estendal que não caberia neste artigo de jornal.

Foi o XVII Governo Constitucional, que saiu das eleições de fevereiro de 2005 com uma maioria absoluta do PS e durou até às eleições de outubro de 2009. Esse foi o período do esplendor socratista, do abuso de posição maioritária, de amesquinhamento das oposições, do “animal feroz”.

Tudo o que foi feito – desde os negócios da energia, aguilhoados por um ministro da Economia que se veio depois a saber que como ministro recebia um estipendio mensal do Grupo Espírito Santo, até aos inacreditáveis negócios à roda do aeroporto de Alcochete, em que só em projectos foram gastos centenas de milhões de euros, já sem falar nos 500 milhões de euros (quinhentos!) gastos num gigantesco desperdício de dinheiro chamado SIRESP (pelo ministro da administração interna António Costa) – foi feito à vista de toda a gente, deliberado em Conselho de Ministros e, quando era o caso, devidamente votado pela maioria socialista na Assembleia da República.

O resultado desse festival de decisões ruinosas, já sem falar em corrupção, veio a ser colhido em 2011, quando Portugal entrou em insolvência e foi necessário pedir ajuda à União Europeia nas condições draconianas que, aliás, os socialistas negociaram.

A questão é esta: como é que José Sócrates podia ter feito tudo o que fez – e fez debaixo dos nossos olhos – sem a participação activa, conivência, cumplicidade e ajuda empenhada, dos seus ministros, deputados e parafernália vária que rodeia um Governo e uma maioria absoluta?

Como teria ele podido influenciar as assembleias gerais da PT, ou o Governo da Venezuela, ou quem quer que fosse que adjudicasse as empreitadas de reabilitação das escolas, sem passar pelos ministros do seu Governo, pelos respectivos secretários de Estado, pelos vários escalões hierárquicos até aos directores de serviços, por ordens dadas através do Ministério da Economia, dos Negócios Estrangeiros, das Finanças… como poderia ele?

Já ouvimos dezenas de pobres de espírito, declarar na Assembleia da República que “não se lembram, não têm recordatória, não se lhes ocorre, perderam a memória” e tantas outras frases que só por si deviam dar cadeia, a propósito destes negócios. Adorava também ter ouvido os ministros que deliberaram estas coisas em Conselho de Ministros e os deputados do PS que as votaram na AR, explicar porque o fizeram. Provavelmente invocariam a mesma desmemoriação imbecil. A verdade é que são tão responsáveis como os responsáveis pela gestão do BES ou da PT pela ruína a que o país foi conduzido.

Com raras execepções, como António José Seguro, nenhum socialista dos que detiveram as rédeas do poder entre 2005 e 2011, denunciou ou se afastou do chefe. Nem António Costa, nem nenhum dos outros. Pelo contrário, nas eleições de 2011, Costa, Medina e tantos outros, não se privaram em comícios e declarações de dizer maravilhas do seu chefe, Sócrates. E fizeram empenhada campanha para que o seu amado chefe, o repositório de tantas maravilhas (e da bancarrota) fosse reeleito, como já tinha sido, com a ajuda dos mesmos, em 2009.

É uma coisa que entra pelos olhos dentro que sem a participação amiga e empenhada dos seus acólitos do PS, Sócrates não poderia ter feito nada do que fez.

Admitindo que a maior parte desta triste gente nem sequer recebeu alguma coisa por ter tão diligentemente participado na ruína do país e na destruição de vários dos maiores grupos económicos nacionais, que razão os levou a esta cumplicidade extrema com o chefe?

Há o medo de perder o lugar, é certo; o conformismo dos cobardes e dos imbecis, que havia e há muitos; nalguns casos, admito que até, talvez, uma confiança tola no acerto e na probidade do chefe, mas, santo Deus, em 2009 não era já evidente para esta gente, que o rumo era para o desastre e que o empreendimento era criminoso?

Como seria possível a um ministro visivelmente fino e capaz como António Costa, ignorar que estava ao serviço de um criminoso? Que se não era ainda evidente, era de prever que um governo criminoso ia lançar, cedo ou tarde (como Manuela Ferreira Leite bem denunciou a partir de 2008) o país na bancarrota? Não era possível e em vez de tomar uma posição, saiu para a Câmara de Lisboa. Mas sempre muito solidário com o chefe…

É destas traições à confiança de que eram depositários, desta aceitação do crime como método de Governo, deste abúlico conformismo em nome – se é que era – da solidariedade partidária, que nasce o rebaixamento de um país, a rota descendente que não deixamos de seguir desde então.

Em suma, foram tão culpados por cumplicidade activa como o homem que agora carrega nos ombros as culpas de todos os crimes cometidos pelo Governo de que foi chefe. Questão então para nos interrogarmos: porque é que onde foi um, não vão todos?

Advogado, ex-secretário de Estado da Justiça

Subscritor do "Manifesto: Por Uma Democracia de Qualidade"