Uma sentença exemplar


Perante as sucessivas privações da liberdade dos cidadãos fora do estado de emergência a que se tem assistido nos últimos tempos, é bom que o Governo comece a colocar no Orçamento do Estado uma verba destinada a satisfazer os pedidos de indemnização.


Em Abril do ano passado, nas vésperas do primeiro levantamento do estado de emergência, o primeiro-ministro veio dizer que “confinamento é para manter, diga o que disser a Constituição”, referindo que “quer a Lei de Bases da Protecção Civil, quer a Lei de Saúde Pública dão ao Estado os instrumentos necessários para poder agir”. E desde então o Governo aprovou sucessivas resoluções do Conselho de Ministros afectando gravemente os direitos fundamentais dos cidadãos, as quais não passam de meros regulamentos, que nem sequer estão sujeitos a promulgação pelo Presidente da República.

Agora que o estado de emergência voltou a ser levantado, o Governo reincidiu na mesma actuação e aprovou a Resolução do Conselho de Ministros 45-C/2021, de 30 de Abril, que determinou no seu art. 25º a sujeição a confinamento obrigatório de 14 dias “no domicílio ou em lugar indicado pelas autoridades de saúde” de todos os que cheguem a Portugal oriundos de certos países. É manifesto que esta obrigação de confinamento não é permitida pelo art. 27º da Constituição, que não a inclui nos casos em que considera admissível a privação da liberdade, sendo portanto claramente inconstitucional. Acresce que uma resolução do Conselho de Ministros nem sequer é acto idóneo para restringir, quanto mais suspender, direitos, liberdades e garantias que, nos termos dos arts. 18º e 165º, nº1, b) da Constituição, apenas podem ocorrer com base em lei do Parlamento ou decreto-lei do Governo por este autorizado.

Apesar disso, as autoridades de saúde têm aplicado esta Resolução do Conselho de Ministros, obrigando a confinamento obrigatório de 14 dias todos os cidadãos que chegam a Portugal vindos de certos países. Em consequência, no passado dia 3 de Maio, a advogada Vanessa Klaus, acompanhada pelo seu marido e filha menor, todos com teste negativo ao SARS-CoV-2, foram obrigados pela autoridade de saúde a permanecerem na sua residência por 14 dias, sujeitos a vigilância policial, apesar de não terem qualquer doença ou infecção, o que obviamente equivale a uma situação de prisão domiciliária decretada por uma autoridade administrativa, com base num simples regulamento administrativo. No caso de um advogado, representa a impossibilidade prática de este exercer a sua profissão, designadamente contactando com os seus constituintes.

A Dra. Vanessa Klaus avisou da sua situação à Ordem dos Advogados e instaurou uma providência de “habeas corpus” no Tribunal de Instrução Criminal de Sintra. Após audiência de julgamento, em decisão proferida no passado dia 7 de Maio às 19h30m, o Senhor Doutor Juiz Pedro Faria de Brito declarou inconstitucional “material e organicamente” o art. 25º da Resolução do Conselho de Ministros 45-C/2021 e em consequência declarou “ilegal a ordem de privação da liberdade dos requerentes”, determinando a sua imediata libertação, “não podendo os mesmos ser compelidos a permanecer na habitação com fundamento na decisão da autoridade de saúde”. Ao mesmo tempo, determinou “a imediata comunicação desta ordem à autoridade de saúde e órgãos de polícia criminal, ficando passíveis de responsabilidade criminal e disciplinar aqueles que pretenderem compelir os requerentes a permanecer na habitação sem possibilidade de frequentar a via pública, com fundamento na ordem que agora se declara ilegal”.

Trata-se de uma sentença exemplar de um Tribunal que assegurou o respeito da Constituição perante actuações do Governo claramente inconstitucionais que se traduzem na violação do direito fundamental dos cidadãos à sua liberdade.

Há ainda a referir, a este propósito, que o art. 27º, nº5 da Constituição determina que “a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer”. Perante as sucessivas privações da liberdade dos cidadãos fora do estado de emergência a que se tem assistido nos últimos tempos, é bom que o Governo comece a colocar no Orçamento do Estado uma verba destinada a satisfazer os pedidos de indemnização.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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