As celebridades e a reclusão muito antes da pandemia

As celebridades e a reclusão muito antes da pandemia


Mesmo sem o temor de uma pandemia, há quem tenha encontrado vantagens em ficar longe do mundo. E foram algumas das celebridades mais admiradas aquelas que, sentindo o cerco esmagador da atenção pública, provocaram um enorme fascínio no público ao escapar ao seu traiçoeiro beijo, vivendo em confinamento, fosse em mansões luxuosas, fosse em humildes…


São os protagonistas de evasões decisivas, não dos que escavam uma saída para a liberdade, entregando-se ao mundo, mas dos que, em sentido inverso, escavam os seus buracos para desaparecem neles. Autores e artistas que, num dado momento, se alistaram contra o mundo, ou pelo menos fugiram-lhe, com a sua confiança e o seu desespero tomando as rédeas da vontade, procuraram a reclusão em mansões, castelos ou ilhas, no quarto fechado onde os muros invadem os pulmões, e dizem-nos algo sobre a experiência do confinamento a que a pandemia nos sujeitou no último ano das nossas vidas. Se todos precisamos de uma sala dos fundos só para nós, na qual criemos a nossa verdadeira liberdade, e que nos sirva de refúgio e isolamento, isto é ainda mais assim no caso das pessoas que sentem o mundo como uma emboscada, e que em todo o lado sentem essa exposição constante, ao ponto de preferirem pagar o preço de estarem sempre sós a terem de suportar um entra e sai de companhias indesejáveis. A nossa época ama o poder, adora o êxito, a fama, prefere os espíritos gregários aos solitários, e estende o seu culto a tudo o que rime com eficácia e utilidade, de tal modo que, mesmo o regime do atual confinamento se transformou, para muitos, numa devastação das zonas privadas, com a integração no mundo digital a permitir essa invasão por meio de uma infinidade de estímulos e impulsos, esse acosso constante que passa pela regime do teletrabalho sem se ficar por aí. “E eis que outro mal me atacou na sequência do resto. E fora e dentro de minha casa fui acometido por uma peste mais forte do que todas as outras”, registava Montaigne. “Vi-me sofrer a caricata situação de a vista da minha casa me ser assustadora. Tudo se encontrava ao abandono e à mercê de quem quer que fosse. Eu, que sou tão hospitaleiro, fui à procura de um refúgio para a minha família, uma família perdida, que infundia medo aos seus amigos e a si própria, e horror onde quisesse instalar-se, tendo de mudar de sítio logo que alguém do grupo começava a sofrer a mais pequena dor. Todas as doenças são tomadas por peste…”

Mas se a nossa época triunfa precisamente na forma como nos atrai para esse desejo de visibilidade constante, é consolador saber que houve quem tenha sido alvo da maior admiração, detido verdadeiro poder e influência apenas para se lhe recusar, preferindo a obscuridade. Enquanto o ego da maioria fica à mercê de flutuações de um humor incompreensível, acabando por ser devorado e aniquilado, outros há que se entregam à suave luz da distração, da excentricidade, e aqui o que propomos são alguns exemplos, artistas e autores que puderam entregar-se à mais discreta das formas de loucura, como aranhas tecendo os seus labirintos com as dimensões da necessidade, bem para lá do que é conhecido e da própria esperança, criando um fascínio mesmo se ficam obrigados a jantar a sós uma dieta de moscas mortas. “Negras e douradas, brutas e crédulas/ Somos essas aranhas que de si mesmas arrancaram/ Teias tristes do tempo balançando contra o sol -/ Quebradas por segredos que o tempo jamais dirá”, escreveu Malcolm Lowry.

A loucura desempenha, em parte, um papel nestas retiradas. Mas, como Nietzsche notou, os “maus instintos são necessários para conservar as forças que, a não terem existido, deixariam a humanidade, desde há muito, amolecida, e degradada”. E já Montaigne frisava que, “nas ações dos homens insensatos, vemos como a loucura se ajusta bem às mais vigorosas operações da nossa alma”. O pai do Ensaio, deixava ainda esta pergunta retórica: “Quem não sabe como é impercetível a vizinhança entre a loucura, as expressivas elevações de um espírito livre e os efeitos de uma virtude suprema e extraordinária?”

 Ora, se a pandemia nos mostrou algo sobre a nossa sociedade é a incapacidade atual dos homens para se libertarem, mesmo em face de acontecimentos transformadores e extraordinários, dos condicionalismos da sociedade, de tal modo que a organização do trabalho e do próprio lazer, orientada para a produtividade e segundo a lógica do lucro, leva a que se tenha hoje uma experiência do mundo e até da relação que mantemos uns com os outros sujeita um regime de transação. Se apesar de um estupor que quase sempre nos domina ainda sentimos, na carne e no espírito, que vivemos um tempo dos mais atrozes, o da pior selvajaria, a verdade é que são cada vez mais raras as personalidades capazes de rejeitar de forma decisiva o mundo para salvarem dele as suas vidas. Assim, não se trata de uma tolice, de uma forma de insanidade inofensiva, esse desejo de evasão que leva alguns a preferirem o cativeiro.

E não são apenas as celebridades, mas os espíritos que têm maior dimensão interior a protegerem-se e à sua solidão bem como o mundo que esta cria para seu recreio, essas almas que vibram de uma truculência que copia para dentro de si o que veem cá fora, mas numa versão aumentada, melhorada, tantas vezes mais intensa e admirável. O que não deixa de ser extremamente exigente, e, nalguns casos, faz com que se precipitem na loucura, como aconteceu com Nietzsche. Élie Faure escreveu um fabuloso ensaio a respeito dessa “dança sobre o abismo” que o filósofo realizou, e nele permite-nos reconstituir o período final da sua vida, antes de exilar num silêncio de tal modo profundo que nem o seu corpo tinha qualquer janela com a luz acesa, e não havia o menor sinal de vida interior. “Sofreria ele de solidão ao ver-se completamente perdido num hotel da montanha? Mais perdido se sentiria ainda entre a sórdida e turbulenta multidão do porto de Génova, entre a ociosa multidão de Nice ou entre os turistas convencidos que, da praça de S. Marcos ao cais dos Shiavéne, passeiam sacos a tiracolo, Baedekers e chapéus verdes? (…) Aquelas pessoas que o acotovelavam na rua mesmo na sua presença se permitiam admirar e julgar sem compreender, sem saberem que ao lado atuava uma terrível força. Nem chegariam nunca a sabê-lo. Eram incapazes disso. (…) De facto, ele transportava consigo tudo quanto era sombra e luz mas ninguém o sabia, ninguém o sentia. Nenhum rosto ávido se aproximava dos seus lábios. O fardo caía totalmente em cima dele. No seu crânio girava uma implacável roda, moía a matéria pensante de onde lampejos escorriam. Quanto mais ele se elevava, mais sentia o poder de recriar para os homens um pretexto de ação, e mais eles o isolavam nesse poder que nem sequer medo lhes metia, que pura e simplesmente ignoravam. A sua vingança era poder vaguear ao pé daquele mar onde a montanha vivia. Chegava a acreditar – repetiu-o vinte vezes – que entre a silenciosa e fresca atmosfera das alturas, o sopro dos glaciares, a proximidade das estrelas e o seu violento impulso acima de mentiras e compromissos do mundo havia uma troca de confidências que lhe povoava a solidão e o subtraía ao desespero…”

 

Bill Watterson é conhecido pelas tiras de banda desenhada Calvin & Hobbes que criou até 1995. A um olhar desprevenido a coisa parece bastante simples: dois personagens – um miúdo de 6 anos, Calvin (nome inspirado no reformador protestante João Calvino) e o seu amigo imaginário, o tigre Hobbes (homenagem ao filósofo inglês Thomas Hobbes). Todas as coisas que um rapaz de 6 anos gosta de fazer, Calvin também as quer. Mas no meio de fugas à autoridade de pais e professores, experiências com pregos, bonecos de neve e outras tropelias – sem esquecer o arqui-inimigo chamado sopa -, há lições de vida, filosofia e questões com respostas difíceis. A tira ganhou o prémio Reuben (a maior do National Cartoonist Society’s) três vezes. Mas em 1995 Watterson pousou o lápis frustrado com os prazos diários e depois escapou aos olhos do público. Ficou conhecido por recusar entrevistas e pedidos de autógrafos. Também nunca quis comercializar os dois personagens, convicto de que isso apenas rebaixaria a sua criação. 

Bettie Page (Tennessee, 1923-Califórnia, 2008) foi a pin-up original, a miúda que fazia os olhos de homens e mulheres estamparem-se contra a folha do calendário. Esta modelo erótica, uma das primeiras capas da Playboy e símbolo sexual de várias gerações, influenciou dezenas de artistas até aos nossos dias, e a sua marca pode sentir-se em estrelas como Katy Perry e Rihanna. Depois da sua idade de ouro, aos 34 anos, Page converteu-se ao cristianismo. Procurou ligar-se a causas sociais, particularmente no ensino, mas foi sempre assombrada pelo seu passado e até por se ter divorciado, tendo muita dificuldade para ser levada a sério. No final dos anos 70, foi-lhe diagnosticada esquizofrenia. Retirou-se, e, quando nos anos 90, morava numa casa de repouso, vivendo com pouco dinheiro, renasceu o interesse por ela graças a exposições e documentários. Chegou a dar algumas entrevistas, mas sempre por telefone ou, se fosse para a televisão, exigia que o seu rosto permanecesse na penumbra. Não queria que o público visse como o tempo a tratara mal, desejando que ficasse com a imagem dela na sua juventude. Morreu em 2008 aos 85 anos.

Stanley Kubrick (Nova York, 1928 – Hertfordshire, 1999) fez a sua revolução pessoal no cinema antes que isso ficasse fora de moda, numa altura em que toda a gente estava ainda interessada no que a arte tinha a dizer sobre o mundo. Bastaram-lhe 13 filmes para que a sua visão fizesse estremecer os horizontes em todos os géneros possíveis, e nenhum dos seus filmes repete ou nasce da sombra de qualquer outro. Os filmes que fez são explorações num imaginário que não deixa de nos conquistar e provar que o futuro ainda não teve estômago para as digerir inteiramente. Pense-se em Lolita, Dr. Strangelove, 2001 – Uma Odisseia no Espaço, A Laranja Mecânica e Barry Lyndon. No início dos anos 60, Kubrick foi morar no Reino Unido para filmar Lolita, e decidiu ficar por lá, numa mansão no interior, a meia hora de Londres. A partir de então, rodou todos os filmes em Inglaterra, desculpando-se com o medo de voar. Nos 40 anos seguintes, entre a mudança e sua morte em 1999, não voltaria a deixar o país. Falava com os amigos e os produtores nos EUA por telefone e dava poucas entrevistas. 

Trinta anos depois da sua morte, e tantos mais depois de ter-se retirado do foco mediático, Greta Garbo (Estocolmo, 1905 – Nova York, 1990) persiste como um dos grandes mitos de Hollywood, tendo sido imortalizada nalguns dos filmes mais marcantes do período de ouro do cinema americano, nomeadamente nos anos 30, com o seu rosto a ficar gravado no imaginário popular ao surgir no grande ecrã em Mata Hari (1931) ou A Dama das Camélias (1937). "Alta, andrógina, de rosto anguloso que atraía a luz, salientando uma fotogenia singular, Garbo incorporou o mistério de um rosto e de um corpo sem tempo, nem espaço." Aos 36 anos, aquele que seria o último dos seus filmes (Duas Vezes Meu, 1941) não teve o sucesso esperado e Garbo perdeu o interesse na indústria. Tornou-se colecionadora de arte, comprou um imenso apartamento em Nova Iorque e, embora continuasse a fazer viagens ocasionais com amigos poderosos, não deu uma única entrevista à imprensa. Quando saía, para um raro passeio pelas ruas de Nova Iorque, usava roupas discretas e enormes óculos escuros.

Toda a produção literária de J.D. Salinger consiste num romance e 13 contos, todos escritos antes de 1959. O seu ato de desaparição da vida pública após a publicação teve início depois da publicação de The Catcher in the Rye (À Espera no Centeio), em 1951, obra que possui a dupla distinção de ter sido um livro proibido e leitura obrigatória nos liceus dos EUA. Enquanto a adulação ao livro se espalhava, e Salinger se tornava um dos poucos escritores a ganhar um papel central no imaginário popular, isso levou-o a sentir-se cercado pelas expectativas e os delírios dos seus apaixonados leitores, com muitos deles a procurá-lo como se se tratasse de um guia espiritual. A partir de 1980, Salinger não voltaria a dar entrevistas. Viveu a vida de um eremita em Cornish, New Hampshire, onde mandou construir um muro ao redor de sua casa depois de uma entrevista que deu ter acabado impressa numa grande publicação. Era budista e detestava que o procurassem, que o fotografassem, que se metessem na sua vida.