Porque na semana passada falhei junto dos meus leitores, importa começar desta vez com uma nota prévia:
Mesmo se a nossa mente está cheia de ideias que mereçam ser partilhadas, nem sempre nos encontramos em condições de as apresentar, falando ou escrevendo. Quando Deus questiona Adão sobre a falta cometida – recorde-se que não podiam comer o fruto proibido –, este aponta Eva como culpada e esta a serpente. Assim sendo, começo por apontar o dedo ao meu dente do siso.
Uma dor de dentes pode transformar-se, literal ou metaforicamente, numa verdadeira dor de cabeça. Sem condições para escrever o que quer que fosse, pelo menos duas certezas habitavam o meu espírito naquele momento. Se por um lado me encontrava num estado de indisposição geral por outro tinha presumivelmente achado tema para uma crónica.
Contrariando a tendência que julgo refletir o sentimento da maior parte das pessoas, gosto de ir ao dentista. Não havendo dor, sinto-me como se estivesse a receber uma massagem ou um bom tratamento de pedicure. Mas, enquanto aqui podemos falar de tudo um pouco, com frequência a convite do profissional que nos atende, no dentista, impera a ausência de diálogo. Conclusão – vou extrair um siso, melhor, dois sisos.
É aterrador pensar que uma parte de mim vai ser amputada. É dramático pensar que cheguei à idade a partir da qual começarei a perder partes.
No final da consulta, a receita milagrosa – amoxicilina + ácido clavulânico. Um antibiótico de espetro alargado que mata uma grande parte das bactérias que nos causam infeção. Para lá da receita, uma consideração: a extração dos dentes do siso é recorrente, aliás, nos últimos anos tem-se observado um fenómeno interessante – a criança pode nascer sem dentes do siso. Esta afirmação da dentista maravilhou-me.
Aprendi em Biologia que os seres vivos estão, por necessidade de sobrevivência, em permanente adaptação ao meio. Assim, têm aparecido ao longo de milhares de anos nos seus corpos, novos tecidos e novos órgãos. A eliminação dos dentes do siso parece ser um processo natural que não dispensa por enquanto o contributo do dentista.
Assim, no final da consulta deparou-se-me um problema: sempre ouvi dizer que juntamente com os dentes do siso vinha o juízo. Ora bem, perdendo os dentes do siso perderei o juízo? E os que virão, ajuizarão? Alhear-se-ão?
Com ou sem juízo, a verdade é que não quero nem pensar como correria a extração do dente sem a anestesia. Graças a ela, tudo é sem dor – nada sentimos. Aliás, a natureza da anestesia é exatamente esta – afastar a dor. Torna-nos insensíveis e permite uma aparente sensação de alívio, alheamento que nos faz acreditar que está tudo bem.
Professor e investigador