A “normalização” da extrema direita pode ser feita pela direita não extrema, como aconteceu, por convicção, em Madrid, com o Vox, ou como está a acontecer em Portugal com o Chega, dizem alguns que por necessidade da direita dita ao centro. Em França a “normalização” aconteceu a partir da extrema direita, com a morte do pai Jean Marie às mãos da filha Marine. A evolução do nome da coisa dá nota do processo de camuflagem. Em 1972 Jean Marie criou o Front national (pour l’unité française) a partir do abertamente neo-fascista Ordre nouveau. Em 2018 Marine pôde baptizar gaullisticamente a recriação como Rassemblement national (RN).
A “normalização” teve de ser intestina porque o sistema eleitoral francês, maioritário a duas voltas, promove as coligações oportunísticas anti-RN. Não obstante uma forte base de apoio social e o elevado número de votos em urna, o RN tem poucos deputados, ainda menos autarcas e nunca fez eleger um Presidente da República.
A V República nasceu contra os excessos do parlamentarismo et pour cause, contra os partidos políticos, idealmente transformados em comissão eleitoral a reunir de sete em sete anos para celebrar o encontro entre um homem e o povo francês. À direita, de Gaulle nunca quis partidos políticos. Para adversário bastava-lhe o PCF e contou com ele para manter a balcanização da esquerda. A criação do PSF em 1969 e a federalização das esquerdas em 1971, pela mão de Mitterrand, durou até 2017, servindo o único mandato presidencial de Hollande para certificar o óbito.
Muito antes finara-se o PCF. Muitos dos órfãos, militantes, votantes e simpatizantes, passaram a votar FN, encontrando no discurso anti-imigração e economicamente neo-proteccionista um paliativo para a pauperização do proletariado e para a proletarização da classe média. Do ponto de vista sócio-económico a França já mudara, faltava verter a mudança para o sistema partidário.
A eleição de Macron em 2017, sem partido, sem ideologia, sem programa, foi uma tentativa de resposta ao sentimento de orfandade política. Quatro anos depois, as sondagens para as eleições presidenciais de 2022 dão nota da grogne contra a “France d’en haut” e a impotência económica e securitária do Estado: a segunda volta será disputada entre Le Pen e Macron. O vencedor ganhará por pouco, não haverá federalização do voto contra Le Pen, a normalização do RN funcionou e, quer à esquerda, quer à direita, Macron será tão desprezado quanto Chirac em 2002 mas muito menos eleitores se darão ao trabalho de votar nele.
Uma vitória de Macron dependerá em grande medida da velocidade da recuperação económica pós-pandemia, o que tem como pressuposto o fim da dita ou o seu controlo por via da vacinação e/ou do tratamento. Se a retoma económica tardar ou tiver traços anémicos, as possibilidades de Le Pen se sentar no Eliseu aumentam. Se tal acontecer assistiremos a um arrependimento dramático: poucas semanas depois da segunda volta das presidenciais os franceses irão alegremente eleger nas legislativas um parlamento anti Le Pen. Será certamente uma coabitação política ainda mais interessante do que as três que já ocorreram durante a V República. Menos fácil será a identificação de um programa político comum e exequível. Talvez um Frexit, primeiro ameaçado, para extorquir a Bruxelas uma atenuação das regras do mercado interno e do pacto de estabilidade e um maior controlo das fronteiras, e depois concretizado pela via referendária?
Em modo cínico: adivinham-se tempos interessantes…
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990