Visando salvar Atenas da má governação, um grupo de mulheres lideradas por Praxágoras invade a Assembleia do Povo e forma um governo que impõe radicais políticas igualitárias, económicas e sociais e uma liberalização dos costumes, até no domínio sexual. É este o tema da Assembleia de Mulheres, uma das mais notáveis e atuais comédias de Aristófanes.
No início do século IV a. C., findo o apogeu, as guerras com Esparta traziam aos atenienses dificuldades económicas e grande desigualdade social. Neste clima, ideias igualitárias e comunistas iam fazendo caminho entre os cidadãos (a elas se referiria depois Platão em A República), levando Aristófanes a escrever e representar a peça Assembleia de Mulheres, crítica vigorosa desse ideário nascente.
Na economia, a primeira medida foi abolir a propriedade privada, revertendo todos os bens para um fundo comum, já que não era correto que um seja rico e outro miserável, um cultive extensos terrenos e outro não tenha um palmo de terra. É a “cidade” que passa a atribuir a cada cidadão casa, alimentação e dinheiro para viver. E quem retenha as suas propriedades é considerado ladrão da comunidade.
No domínio social, qualquer homem ou mulher poderá deitar-se com o parceiro escolhido, mas desde que se deite primeiro com todos os mais feios que o eleito, propiciando um acesso de todos ao bem sexual.
Nasce assim uma nova ordem em que as desigualdades baseadas na riqueza, na idade ou na beleza ficam à partida eliminadas.
Contudo, mal entra a cena, a comédia da nova ordem é confrontada com uma pergunta simples de um cidadão: “se eu vou dar a terra, quem é que a vai cultivar?’’
“Claro que os escravos”, respondeu Praxágoras, seguida pelo coro das suas apoiantes. “E não terás mais preocupações com ela…”.
E a ação prossegue, quando sobem ao palco os oportunistas que vão beneficiar do novo sistema sem perder os privilégios do antigo ou os que se aproveitam de todas as assimetrias do mesmo. Uns retratados pelo próspero proprietário que não prescinde do seu lugar nas refeições comunitárias, mas vai adiando a entrega das suas propriedades, e os outros representados por Blepyrus, o marido de Praxágoras, nos braços de duas bonitas donzelas, agora recuperado da sua virilidade, liberto que foi pelo regime das suas tarefas anteriores. Proximidade ao poder assim o exige.
Mas se a nova ordem contemporiza com os privilégios de Blepyrus, mesmo que ofendendo as normas estabelecidas, já usa uma nova medida e castiga o jovem que se encontra com a sua bela namorada sem passar pelas etapas intermédias e é indefinidamente escravizado por bruxas velhas e feias, fazendo valer o seu estatuto de prioridade.
A comédia de Aristófanes caustica uma ideologia que resultou na amarga tragédia tão bem configurada por Orwell na poderosa metáfora O Triunfo dos Porcos. E que, vinte e quatro séculos passados, renascida no Syriza, logrou chegou ao poder numa experiência logo rejeitada pela assembleia do povo grego.
Exemplar é que Marx foi um exemplo vivo dos beneficiários da velha como da nova ordem revelada na comédia de Aristófanes. Com uma vida pessoal e familiar caótica, esbanjamento da fortuna herdada, traições à mulher e abandono de filhos, viveu muito do apoio do amigo Engels, mais prosaicamente, dos rendimentos da “exploração” dos operários das fábricas da família, algumas das quais o próprio Engels geria. Há sempre “escravos” a materializar a suposta igualdade dos eleitos.
Por cá, essa ideologia condiciona muito da ação governativa e da “cultura” oficial. Ao ponto de se poder duvidar que Aristófanes conseguisse hoje uma sala em Portugal para representar a sua comédia. Afinal, “a beleza de matar fascistas” é que vai imperando no teatro nacional.
Praxágoras deve estar feliz, neste canto da Europa: o almejado nivelamento já foi atingido entre política e espetáculo. A farsa pode seguir.
Economista e Gestor
Subscritor do Manifesto Por uma Democracia de Qualidade
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