As notas de introdução, de John Rawls, às suas “Palestras sobre a história da filosofia política” (Instituto Piaget, 2013) – editadas por Samuel Freeman, assistente de Rawls na Primavera de 1983, que gravaria, de resto, algumas dessas lições dadas à estampa, originalmente, em língua inglesa, em 2007 – não são despiciendas, na medida em que visam oferecer a correcta interpretação do estatuto que, no entender do autor de “Uma Teoria da Justiça”, a filosofia política deve ter na cidade.
A este respeito, Rawls principia com uma formulação pela negativa: os “escritores de filosofia política” não podem reclamar qualquer tipo de especial autoridade para a governação (p.22). A eventual ideia de que na filosofia política o uso da razão adquire especial intensidade não convence o autor, dado que o bom emprego da racionalidade se joga em qualquer discussão política em que “os cidadãos (…) falam razoável e conscientemente quando se dirigem a outros”.
Todavia, é bem certo que textos há que logram um conjunto de “afirmações invulgarmente sistemáticas e completas de doutrinas e ideias democráticas fundamentais” que perdurarão em uma sociedade democrática, tornando, aliás, perenes, os debates, no seu seio, acerca deles, o que irá, claramente, contrabalançar com escritos que se perdem na espuma dos dias – e, assim sendo, bem podem os primeiros, de entre os ditos escritos, reclamar uma especial autoridade. Tão especial, contudo, quanto determinada por “um julgamento colectivo, feito ao longo do tempo, na cultura geral de uma sociedade, enquanto cidadãos individuais, um por um, julgam estes textos passíveis de estudo e reflexão”. Isto, porque, bem entendido, não há nenhuma entidade, nenhuma autoridade – de tipo académico, político, judicial, administrativo, etc. – a quem esteja acometida a decisão de fixar a boa filosofia política. Em uma curiosa analogia, Rawls refere que “o mesmo se aplica à comunidade de todos os cientistas, ou, mais especificamente, de todos os físicos. Não há um órgão institucional entre eles com autoridade para declarar, digamos, que a teoria da relatividade geral é correcta ou incorrecta. Em matéria de justiça política numa democracia, o corpo de cidadãos é semelhante ao de todos os físicos nesta área” (p.23).
Será rigorosamente assim? Pelo menos em uma das descrições/asserções, apresentadas pelo (antigo) Professor de Harvard em plano antitético, quanto à teleologia da filosofia política, podemos perceber, justamente, uma reivindicação de cientificidade, de verdade a que se chegou no uso da razão para conceber uma dada filosofia política que, pura e simplesmente, deve ser imposta à polis: a perspectiva “platónica, por exemplo, defende que a filosofia política verifica a verdade acerca da justiça e do bem comum. Em seguida, procura um agente político para concretizar essa verdade em instituições, independentemente de ela ser livremente aceite, ou até mesmo compreendida. Por este prisma, o conhecimento da verdade na posse da filosofia política autoriza-a a modelar, ou mesmo controlar, o efeito da política, através da persuasão e da força, se necessário. Vejamos o exemplo do rei filósofo de Platão ou a vanguarda revolucionária de Lenine. Entende-se aqui a reivindicação da verdade contendo o direito de saber, mas também de controlar e agir politicamente” (p.24).
Outra lógica, perfilhada por Rawls, “a democrática, digamos”, diferentemente, “encara a filosofia política como parte da cultura geral de base de uma sociedade democrática, embora em determinados casos certos textos clássicos façam parte da cultura política pública. Frequentemente citados e aludidos, fazem parte do acervo público e constituem um fundo das ideias políticas de base da sociedade” (p.24).
O que é, afinal, fazer filosofia política? Uma elaboração/desenvolvimento/sistematização de uma dada visão política. E “uma visão política é uma visão sobre justiça política e bem comum e sobre que instituições e políticas melhor os promovem” (p.25). Aqui, Rawls, usa o imperativo: “os cidadãos devem de algum modo adquirir e compreender estas ideias se quiserem ser capazes de fazer juízos a respeito de direitos e liberdades básicas” (p.26). E porque usa, então, Rawls, neste domínio uma verdadeira injunção? Porque, como qualquer cidadão empenhado, não poderia se não perguntar-se acerca do tipo de cidadãos que – pelo menos, maioritariamente – tendemos a ser: “Vêm [os cidadãos] para a política com uma concepção de cidadãos livres e iguais, e capazes de participar na razão pública e de expressar através de voto as suas opiniões consideradas acerca do que é requerido pela justiça política e bem comum? Ou a sua visão da política não vai para além do pensamento de que as pessoas elegem os seus próprios interesses económicos e de classe e os seus antagonismos religiosos ou étnicos, apoiados por ideais de hierarquia social, em que se considera a inferioridade por natureza de algumas pessoas relativamente a outras?” (p.26). Já se adivinham os sorrisos cínicos de uns tantos, o encolher de ombros de muitos outros, a simples constatação dos escombros que vemos no nosso próprio sistema partidário – na ausência de um mínimo de leituras de filosofia política, ou quase sempre, do que quer que seja até, dos conhecimentos mais rudimentares, da curiosidade ínfima por parte dos que, desde a juventude, pensam o partido como centro de emprego -, mas, uma vez mais, é o repto ao ideal de cidadania que possuímos, mais do que isso, à concepção antropológica de que nos nutrimos, que educadores somos que aqui, muito directamente e sem sofismas, é colocado. Se há quem não goste de falar, ou sequer de ouvir falar, em cidadãos livres, em homens e mulheres livres; se há quem não queira refletir em uma posição consequente, (se) aceite o ponto de vista plasmado em estas notas introdutórias, no prisma do “dever ser” no campo educativo – na sua dimensão de sistema de ensino, e/ou na sua variante caseira, privada – esta reflexão de Rawls talvez resulte amarga. Para que serve, que papel cabe à filosofia política, questione-se de novo? Em clara exposição de cariz pedagógico, Rawls sustenta:
a) “O primeiro é o seu papel prático resultante de conflitos políticos divisores quando a sua tarefa é concentrar-se em questões fundamentalmente disputadas e ver se, apesar das aparências, alguma base subjacente de acordo filosófico e moral pode ser descoberta, ou se diferenças poderão pelo menos ser reduzidas de modo a que a cooperação social numa base de respeito mútuo entre cidadãos poderá ainda ser mantida;
b) O segundo papel, que eu chamo de orientação, tem a ver com o raciocínio e reflexão. A filosofia política pode contribuir para o modo como um povo encara as suas instituições políticas e sociais como um todo, a si próprios enquanto cidadãos, e os seus objectivos e propósitos básicos enquanto sociedade com uma história – uma nação – em contraste com os seus objectivos e propósitos enquanto indivíduos, ou como membros de famílias e associações;
c) Um terceiro papel, destacado por Hegel na sua obra intitulada Philosophy of Right (1821), é o da reconciliação: a filosofia política poderá tentar acalmar a nossa frustração e raiva contra a nossa sociedade e respectiva história mostrando-nos o modo no qual as suas instituições, quando devidamente compreendidas, numa perspectiva filosófica, são racionais, e se desenvolveram ao longo do tempo como fizeram para obter a sua actual forma racional;
d) O quarto papel é o referente à examinação dos limites da possibilidade política praticável. Neste domínio, consideramos a filosofia politica realisticamente utópica. A nossa esperança para o futuro da nossa sociedade reside na crença de que o mundo social proporciona pelo menos uma ordem política respeitável de modo a tornar possível um regime democrático razoavelmente justo, embora não perfeito. Assim sendo, colocamos a seguinte pergunta: como funcionaria uma sociedade democrática justa sob condições históricas razoavelmente favoráveis, mas ainda possíveis, condições essas aprovadas pelas leis e tendências do mundo social? Que ideais e princípios tentaria essa sociedade realizar dadas as circunstâncias de justiça numa cultura democrática tal como as conhecemos?”.
Para os que gostam(os) de filosofia política, eis um conspecto geral do modo como Rawls encara o papel que esta pode e deve ter na inspiração do humano livre e da cidade mais forte, porque mais associativa, cooperante, empenhada, democrática.