O divórcio apanhou os fãs de surpresa. O diário francês Le Figaro considera que “é uma má notícia para a marca”, enquanto o Libération fala de desilusão. Passados menos de dois anos, esta quarta-feira, 26 de abril, a Kenzo revelou em comunicado que “o contrato entre a Kenzo e Felipe Oliveira Baptista termina no final de junho de 2021, data em que deixará de assumir as atuais funções”. Citado pela AFP, o designer português foi lacónico, declarando-se apenas “extremamente honrado por ter estado ao serviço” da Kenzo e do património do seu fundador, Kenzo Takada, que morreu em outubro de 2020 aos 81 anos, vítima de covid-19.
O seu primeiro desfile do criador ao serviço da marca francesa realizou-se em fevereiro de 2020, com todas as condicionantes impostas pela pandemia, Baptista teve de pensar numa forma inovadora e num novo caminho para a marca. Em entrevista à Vogue britânica em setembro do ano passado, descreveu a experiência do desfile de moda digital como “mais pobre”.
Mas mesmo neste período inusitado e particularmente difícil para a criação o designer conseguiu trazer uma nova sensibilidade para a marca, com o desejo de fazer “as roupas reais e desejáveis que faltam na moda de hoje”. E foram as silhuetas ousadas e as cores vivas que marcaram as suas três coleções, ideias que acabaram por casar bem com o conforto, escolhido como nova ênfase de 2020.
O seu mais recente vídeo da coleção Outono/ Inverno de 2021 que pretendeu ser uma homenagem a Kenzo Takada, ganhou destaque global, com esta nova forma digital de ver e fazer moda. “Comecei a ver todos os vídeos (recentemente restaurados) dos desfiles da Kenzo de 1978 até 1985 e ver todas as roupas fantásticas em movimento abriu uma nova perspetiva para o mundo de Kenzo”, justificou o designer num jornal criado para apresentar a coleção e respetivo processo criativo. No vídeo, modelos dançam envolvidos em cobertores com botas lunares nos pés: “Eles correm, dançam e celebram nas suas armaduras têxteis, a alegria e a emoção de chegar a algum sítio novo, inesperado e intocado […]. Um anseio visceral pela vida […]. Um desejo visceral pela liberdade”, explicou.
A entrada na marca Kenzo O anúncio de que o designer de moda português iria assumir o lugar de diretor criativo da marca de luxo Kenzo foi feito em julho de 2019. Nascida em Paris, em 1970, pela mão do japonês Kenzo Takada, a marca pertence desde 1993 ao gigante francês Louis Vuitton Moët Hennessy (LVMH).
Na altura, a diretora executiva da Kenzo, Sylvie Colin, declarou à Women’s Wear Daily: “O que nos fez escolher Felipe, acima de outros candidatos, foi o facto de ter uma abordagem artística global. Ele tem uma visão criativa de 360º e irá supervisionar a direção artística a nível global, lidando tanto com as coleções como com a comunicação”. Para Sylvie Colin, a matriz do designer português era compatível com o espírito imaginado por Takada. “Tem a ver com uma certa sofisticação diária, silhuetas que são ao mesmo tempo chiques e desportivas, referiu a diretora executiva.
A chegada de Baptista à Kenzo foi marcada por uma coleção alimentada “em torno de ideias relativamente à nossa existência peripatética”, com djellabas, casacos almofadados que lembram sacos de cama e chapéus do deserto “combinados com um arquivo colorido de cortes fluidos e de impressões estampadas da Kenzo”. “É muito interessante ter um diálogo com uma casa de moda como a Kenzo, devido ao seu legado, e depois combiná-lo com a minha visão do mundo e dos tempos em que vivemos”, disse o designer português.
“Going Places”, foi o nome da primeira coleção do designer para a Kenzo. Para a fazer, o artista foi beber inspiração ao arquivo da marca na época do fundador, mas também às suas próprias origens, dos trajes açorianos à pintura de Júlio Pomar, cujos tigres estampou em vestidos.
Na coleção para a Primavera/Verão 2021, o designer bebeu inspiração na apicultura, com “véus” floridos, cujos estampados foram retirados do espólio da marca. O desfile de ‘Bee a Tiger’, como batizou esta coleção, decorreu no final de setembro, ao ar livre e com o distanciamento social exigido.
A relação entre a moda e a natureza A ligação da marca com a natureza sempre foi evidente e, na sua direção, o designer quis manter essa relação viva, colaborando com o World Wildlife Fund numa linha de camisas de algodão orgânico, como parte do plano do WWF para aumentar a população de tigres na selva até 2022. “Kenzo sempre foi muito sobre a natureza […]. E eu acho que a natureza é a coisa mais bem projetada do mundo”, afirmou então Baptista. O documentário Honeyland, de 2019, sobre um apicultor macedónio, serviu de inspiração para a sua coleção de Primavera/Verão 2021. “As abelhas são as reguladoras do planeta”, escreveu numa das suas notas sobre o programa. “Agora, mais do que nunca, somos oprimidos por um senso de urgência de cuidar e proteger o nosso mundo”, acrescentou.
Esta convicção não começou agora. Já num desfile para a Lacoste (marca que representou durante oito anos) em 2018, Baptista tinha apresentado, em conjunto com a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), uma coleção a que chamou Endangered Species, abdicando pela primeira vez na sua história de 85 anos do logótipo de crocodilo da marca, substituindo-o por temas de espécies em perigo de extinção. Na entrevista à Vogue, afirmou que “uma das coisas mais excitantes de ser designer de moda é a oportunidade de mudar a mentalidade das pessoas, criar coisas que sejam mais amigáveis, impulsionar a inovação e encontrar soluções para os problemas”.
Tal como na Lacoste, Baptista mexeu no logótipo de Kenzo. Aliás, esse foi um dos seus primeiros esforços aquando da sua entrada na marca: remover “Paris” do logótipo, retornando a marca ao seu ethos global original. Numa entrevista que deu à Document, em 2020, explicou que uma das coisas mais bonitas e “ainda muito relevante sobre a marca” é a celebração da diversidade e da mistura de culturas. “Para mim, Kenzo sempre foi buscar inspiração a todos os lugares, por isso parecia-me lógico tirar o ‘Paris’ do logótipo, porque carrega a conotação de uma marca que tem uma herança muito parisiense e francesa […]. Claro que há muito de francês na marca, mas ela é muito mais ampla do que isso”, explicou.
Nascido nos Açores, criado em Lisboa e formado em Londres Nascido em 1975 nos Açores, quando chegou a hora de decidir o que estudar, mudou-se para Londres, formando-se na Kingston University em design de moda. Concluídos os estudos, viveu em Itália, onde trabalhou na empresa de moda Max Mara. Já em Paris, teve a oportunidade de trabalhar na Christophe Lemaire e na Cerruti e, em 2002, viu-se galardoado com o seu primeiro prémio, o Grand Prix do Hyères International Festival.
No ano a seguir, ganhou o ANDAM / LVMH Fashion Award. Nesse mesmo ano, fundou com a sua sócia e esposa Séverine Oliveira Baptista, a sua marca em nome próprio, projeto que acabaria por ser posto de parte depois do convite para ser diretor criativo da Lacoste, onde trabalhou de 2010 a 2018. Durante a sua gestão, as receitas da marca cresceram de cerca de mil milhões, em 2009, para mais de 2 mil milhões de euros, em 2016.
Com uma carreira pautada pelo foco e o rigor, Felipe Oliveira Baptista, deixou e continuará a deixar uma gigante pegada na história da moda em todo o mundo. Um patrão que sempre foi o primeiro a chegar ao escritório, que sempre preservou o silêncio no processo criativo e que deseja continuar a acompanhar a evolução “do vestir”. Agora, a pergunta que fica é: onde dará continuidade a este brilhante percurso?