Catapultado por toda a intelligentsia portuguesa, quase sem excepção, de Nuno Rogeiro a Paulo Portas, embora sem o embalo da crítica especializada, Nomadland é um filme que tem na mediania o seu atributo mais significativo, e que receberá de braços abertos os portugueses no tão esperado regresso às salas de cinema. A vida “nómada” é uma cruz suportada durante hora e meia por uma grande atriz, Frances McDormand, já calejada de percorrer a América ao longo da sua obra, mas desta vez com o vigor restaurado da novidade, como se Nomadland projectasse uma luz nova sobre qualquer coisa (uma luz nova sobre a América depauperada, vista e revista pela massa popular na sala escura, pelo menos desde as vinhas da ira?). O filme é sobretudo um filme ingénuo, porque a realizadora, Chloé Zhao, investe as suas fichas numa experiência que sobrepõe uma certa poesia “malickiana” a uma tentativa sincera, mas pouco impactante, de cinema-verdade (um semi-documentário com modelos que são verdadeiros nómadas, pioneiros e mestres do nomadismo). Porém, as experiências deste tipo já foram tentadas, e foram-no pelo próprio Terrence Malick. Em To the Wonder, Javier Bardem infiltrou-se, lobo em pele de cordeiro, leigo investido da batina do sacerdote, nas mais modestas casas de Oklahoma, povoadas de uma classe desfavorecida que tinha o ator por um anónimo pastor católico. O método de Zhao foi semelhante, muito embora no caso de Malick constitua um pecado de bradar aos céus (documentado em Thy Kingdom Come), cometido em nome da arte, neste caso de uma criação absolutamente magistral e envolvente, à qual Nomadland vai beber o seu aspeto, a sua fotografia, as suas cores, as luzes do sol poente e da hora dourada (como igualmente se inspira no final rústico de Song to Song, em que Malick retrata o retorno de um casal à América campestre, onde se propagam as novas indústrias, as novas técnicas de agricultura, os novos empregadores, que contratam a alma dos mal-assalariados por tuta e meia).
Portanto, Nomadland pega numa América conhecida e limita-se a reciclá-la, o que só por si não constitui um exercício desprestigiante, negativo, como não constitui uma peça digna de palmarés, vulgo, “oscarizável”.
A realizadora, ainda principiante, aborda os atores e os modelos de modo a dotar o filme de uma sensibilidade que transporte o espectador para um mundo solitário, onde seres individualistas por excelência são capazes de exercer uma solidariedade muito própria, onde as rugas e os calos das road-trips e da road-life são currículo e marcas de guerra. É o desprendimento, o “imaterialismo”, e até um tipo de pobreza, voluntária ou menos voluntária, que no filme se representa como condenação, como consequência das sucessivas crises financeiras e bancárias que por arrasto varreram o interior americano, o palco que desde o primeiro momento esteve despovoado do sonho.
Nos melhores momentos, existe beleza, porque a realizadora tem, embora em bruto, o dom de mostrar ligações humanas e, mais importante, de mostrar a consequência brutal que a morte exerce sobre elas, através da montagem inesperada de imagens simples, metafóricas, musicadas, em última análise frágeis. Tudo isto acontece quando se arrisca, e esse é um salto que Zhao não dá mais do que um par de vezes durante todo o filme. Sobre todo o restante paira uma aura de dívida, ao cinema, aos temas, à política, ao momento, aos jornalistas, ao sensacionalismo que mancha o tom do discurso, porque o aproxima de um documentário televisivo sobre uma fábrica que teve de fechar portas e lançar centenas de famílias na penúria (ou na estrada). É com isto, com um filme “destinado”, ao qual todos estendemos uma carpete vermelha (com alguns buracos, para não destoar), que os portugueses poderão regressar às salas de cinema, é a obra que poderão comentar entre a abertura e o novo confinamento que se adivinha, mas é bastante, porque, como se provou, tinha as portas escancaradas para a estatueta dourada, servindo, pois, de alimento por mais um ano. Este ano, como nos anos de que há memória, ficar-nos-emos pela mediania, por um filme que promete uma futura realizadora (ainda não é isto, ainda não é isto…), e que estende uma asa, fazendo-lhe uma injusta (mas talvez necessária) sombra, sobre a grandiosidade de Minari, a surpresa do ano, no que ao cinema americano diz respeito, mas também ao conceito de ser-se deslocado, de fixação onde faltam as raízes, de “fazer-se à estrada”, e dos nómadas, dos originários, os dos tempos bíblicos, que se moviam, e se moveram, até ganharem o direito a uma morada.