Quando o fiat do meu amigo horatiu, um autêntico romeno, cidadão da Transilvânia, de Cluj-Napoka onde, certa vez, eu o Francisco Febrero e o Carlos Mateus passámos uma noite como poucas, começou a fumegar, percebi que o rumo do meu dia estava irremediavelmente alterado. Tínhamos acabado de sair de Setúbal, de tratar desses assuntos comezinhos como dar água e óleo de beber ao burro, mas o bicho não esteve pelo ajustes. Ainda antes da Marateca, fez um ruído parecido com um pffff ao mesmo tempo que um de nós, ou talvez os dois, soltámos uma expressão terminada em asss.
Estava um dia de plena Primavera e pouco trânsito na autoestrada. Nestas coisas em que nada há a fazer, deu-me uma certa segurança ver o Horatiu de cabeça metida dentro do capôt, investigando o motor com o ar entendido de quem não percebe que tipo de boi olha para o palácio ao mesmo tempo que este fumegava devagarinho como um Vesúvio em tempo de calmaria. A cada intervalo dos automóveis que deslizavam no alcatrão, uma bonomia tomava conta do redor.
Um cheiro distante a malvasia, margaridas crescendo a eito na beira do caminho, uma casa ao longe na qual ladrava um cão, talvez irritado com a nossa presença, uma brisa morna que impelia à modorra. Às vezes o tempo passa tão devagar que ficamos com a ideia de que a Terra parou e também precisa de um reboque. O sol desenhava reflexos no vidro, triângulos isósceles, hexágonos, poliedros, mas talvez tudo não passasse da minha imaginação dormente.
Ouvi o trilo das andorinhas por entre os ramos de uma oliveira, senti saudades do jardim da Casa das Conchas, no Olival, onde o meu avô Acácio colecionava pássaros de todas as espécies, e quase consigo jurar que veio à mistura o badalar de um sino a assinalar as duas horas da tarde que ainda se enrolavam na precipitação tão lenta de um reboque. Acordei com o som dos ferros a serem encaixados. Afinal até foi uma tarde bem passada…