Foi uma semana de estreias em Marte. Na segunda-feira, o primeiro voo controlado noutro planeta – que a NASA comparou ao histórico primeiro voo dos irmãos Wright há 117 anos – e na terça-feira cinco gramas de oxigénio extraídos pela primeira vez do dióxido de carbono que abunda na atmosfera do planeta vermelho, mais uma das experiências do rover Perseverance que chegou ao planeta vermelho há dois meses e que dariam para dez minutos de respiração de um astronauta. Florbela Costa, de 32 anos, nascida em Trappes (França) para onde os pais emigraram, regressou a Portugal com 11 anos. Formou-se cá, na Universidade da Beira Interior e depois de uma experiência que lhe abriu portas no desenvolvimento de uma aeronave de grande porte – o KC-390, com capacidade para 26 toneladas de carga – participou no primeiro feito deste pequeno helicóptero de 1,8 quilos que fica na história da exploração espacial. Em conversa com o i numa manhã depois de se confirmar que o Ingenuity consegue mesmo voar em Marte, contou que também chegou a sonhar com ser astronauta, mas na altura o que lhe disseram foi que isso era só para americanos. Coordenou o projeto do Space Lab da empresa suíça Maxon que desenvolveu e produziu os motores do aparelho, que não leva equipamentos a bordo e visa demonstrar se a explosão aérea pode ser viável no planeta.
Conseguiu dormir de domingo para segunda?
(risos) Sim, consegui. O nervosismo era grande há várias semanas desde que o Perseverance pousou em Marte a 18 de fevereiro. Estávamos muito ansiosos por ver este dia chegar, por ver o primeiro voo. Eu estava extremamente ansiosa mas sabia que tínhamos grandes probabilidade de correr bem. Sabemos que todo o trabalho que foi feito da parte da NASA e do Jet Propulsion Laboratory (JPL) foi um esforço muito grande para fazer isto acontecer, assim como da nossa parte na produção dos motores foi preciso cumprir todos os requisitos. O risco é minimizado, mas há sempre algum risco. Felizmente correu tudo bem.
Qual era a probabilidade de correr mal?
Não sei dizer, mas é bastante baixa. Testamos tudo até ao mínimo detalhe aqui na Terra. Na NASA fizeram uma câmara para simular o ambiente de Marte com um protótipo da aeronave a voar. Testaram tudo ao mínimo detalhe. E a prova disso é este voo que corre espetacularmente bem.
A Florbela tocou no aparelho que está agora em Marte ou não chegam a essa fase?
Sim, não no aparelho mas nos motores sim. O meu projeto era desenvolver os seis motores que controlam as pás do rotor, que dirigem o movimento da aeronave. Fizemos o desenvolvimento mas também ajudei na produção, que foi feita na Maxon. Passei dias na produção com os especialistas que estavam a fazer a montagem.
Portanto não é a NASA que depois monta?
Não. O aparelho não tive oportunidade de o ver ao vivo, mas nos motores posso dizer que ainda dei uma mãozinha durante a montagem.
Estamos a falar de peças de que tamanho? O helicóptero é pequeno, tem menos de dois quilos.
Tem 1,8 quilos. Os motores são extremamente pequenos, têm 10 milímetros de diâmetro, 20 milímetros de comprimento. Pesam menos de 9 gramas, entre sete e oito gramas. São mesmo muito, muito pequenos.
É comparável com o motor de alguma coisa que utilizemos no dia-a-dia?
No dia-a-dia não diria. Sei que a Maxon também produz motores ainda mais pequenos, com seis milímetros de diâmetro, que são usados por exemplo nas bombas de insulina. Por exemplo as pessoas que usam bombas de insulina automáticas dentro da pele.
Montar peças tão pequenas imagino que seja já um processo robótico.
Não, por muito incrível que pareça muitos destes processos são manuais.
Um trabalho de relojoeiro.
Exatamente. É um trabalho de muita precisão. Temos muitas mulheres a trabalhar na produção. As mulheres são mais adequadas, têm mãos mais pequenas. São pessoas absolutamente talentosas.
Quanto custa um motor como os do Ingenuity?
Um DCX10 (o motor utilizado no helicóptero) padrão custa cerca de 100chf (90,35 euros). Para o projecto do helicópetro de Marte os valores roundam os 100’000 chf (90 mil euros) para o desenvolvimento, testes e manufatura dos seis motores, o que é um valor bastante baixo por se tratar apenas de uma demonstração de voo. Para os restantes projectos para Marte a Maxon recebeu vários milhões para o desenvolvimento, testes e entrega de motores.
Tocou numa coisa que está a 278 milhões de quilómetros noutro planeta. O que se sente?
É maravilhoso. É muito bom saber que demos o nosso pequeno contributo e fazer com que pela primeira vez um helicóptero voe em Marte. É uma oportunidade única.
Marte tem um terço da gravidade da Terra, 1% da pressão à superfície. Qual é a dificuldade de pôr algo a voar nestas condições?
Um helicóptero em Marte tem de rodar as pás cinco vezes mais rápido do que por exemplo aqui em Portugal. É um dos desafios.
Com o ar mais rarefeito, tem de fazer mais força para se aguentar no ar?
Sim, um helicóptero para gerar propulsão para levantar basicamente o que faz é puxar o ar para baixo. Se há pouco ar, tem de puxar muito mais rapidamente o ar para baixo para criar essa levitação. É mais ou menos similar ao que acontece nos helicópteros que voam em elevadas altitude.
Esta tecnologia pode ajudar cá na Terra os helicópteros a voar mais alto? Vemos por exemplo algumas limitações em situações de resgate.
Sem dúvida. Não só no desenvolvimento das pás mas também nos processos mais básicos nos motores poderão ser utilizados na industria médica, na indústria automóvel. Todas as tecnologias que desenvolvemos para Marte são reutilizadas para outros clientes.
Tem essa visão mais utilitária da engenharia espacial ou é também uma apaixonada pela exploração do Espaço?
As duas coisas. Sou sem dúvida uma apaixonada pela exploração espacial e espero que continuemos nesta direção, a descobrir mais mas também acho muito importante que se desenvolvemos esta tecnologia para Marte, para outro tipo de missão, se possam utilizar os benefícios que podem ter aqui na Terra. É como as guerras. Apesar de serem péssimas, trouxeram muitos avanços tecnológicos ao mundo. Foi o caso do GPS, desenvolvido na II Guerra Mundial. O mesmo acontece agora com a exploração espacial.
Alguma vez quis ser astronauta?
Era um sonho de pequenina, sim.
Tentou candidatar-se?
Não. Quando era pequena disseram-me que era impossível e acho que a ideia ficou esquecida desde então.
Por ser menina, por ser portuguesa?
Acho que foi mais por ser portuguesa. Já não sei se foi alguém da minha família, ou amigos, mas isso também não interessa, mas foi aquela conversa “ah isso tinhas de ser americana para ir para a NASA”.
Mesmo na nossa geração acha que por desconhecimento ainda se cortaram alguns sonhos?
Acho que sim, havia alguma falta de informação. Não fazia ideia que havia astronautas europeus. Hoje é tudo completamente diferente, a informação é muito mais acessível e acho que isso com as crianças de hoje já não vai acontecer.
Quando se decidiu por Engenharia Aeronáutica? Já estava a viver em Portugal.
Sim, foi já no Secundário. O plano era entrar para a Força Aérea. Sempre fui fascinada pelo Espaço e pela Aviação e imaginei que seria o meu percurso. Candidatei-me com 17 anos quando acabei o Secundário, fiz as provas todas, cheguei a fazer prova de aptidão militar, que foram duas semanas de tropa. Depois fiquei em quarto lugar e não consegui entrar, porque só havia duas vagas para Engenharia Aeronáutica. Acabei por ir para a Universidade da Beira Interior, que é a única que tem o curso de engenharia aeronáutica.
Não queria aeroespacial?
Interessava-me o lado da aviação e por outro lado ficava mais perto de mim.
Mas foi satisfeita ou ficou chateada por não haver mais vagas na Força Aérea?
Na altura fiquei bastante desiludida porque queria mesmo muito entrar na Força Aérea. Hoje fico muito contente por ter tido o percurso que tive, de ter ido para a UBI onde aprendi imenso e fiz grandes amigos, por depois ter tido a oportunidade de entrar no CEEIa (Centro de Engenharia e Desenvolvimento, em Matosinhos) na altura em que entrei.
Uma semana depois de entregar a tese de mestrado.
Sim. Acabei por ter muita sorte. Fiquei cinco anos e meio trabalhar no projeto de colaboração entre o CEEIa e a Embraer para o desenvolvimento do KC-390 e de depois tive esta oportunidade fantástica de vir para a Maxon, em Lucerna, e ter os motores para o helicóptero de Marte como o meu primeiro projeto.
É isso que é surpreendente: uma engenheira nova, de 32 anos, estar à frente desse projeto numa grande empresa. Ficou surpreendida com essa responsabilidade?
Fiquei. O meu chefe apostou em mim. Mas é isso, só foi possível porque viu que tinha a experiência do CEEIa. Quando entrei no CEEIa éramos 20 pessoas a trabalhar no projeto com a Embraer, todos muito novos, muitos de nós recém-licenciados ou com mestrados, sem experiência profissional nenhuma. Foram cinco anos em que cresci imenso, tive diferentes posições e no final estava como gestora de projeto à frente de uma equipa de 25 pessoas nesse grande projeto da Embraer em que desenvolvemos o Elevator & Sponson do KC-390, que foi o maior projeto de desenvolvimento que Portugal teve na aviação.
Para quem não percebe nada de aviões, estamos a falar de que parte do aparelho?
O KC-390 é a aeronave que vai por exemplo substituir o C-130 da Força Aérea Portuguesa, é uma aeronave muitíssimo grande, com 34 metros de envergadura. Nós fizemos a barriga do avião, que contém as portas do trem de aterragem, que se chama Sponson. E fizemos o Elevator que é a parte móvel da asa traseira que controla o pitch (movimento em torno do eixo horizontal) do avião, é um flight control (superfícies de controle de voo) da aeronave.
E estava a gerir uma equipa com 26 anos.
Sim, tive muita sorte e acabou por ser uma grande experiência. E isso permitiu-me depois candidatar-me a este trabalho de gestora de projeto na Maxon, apesar de ser muito mais nova do que as pessoas que trabalham comigo.
E como é que isso foi visto? É um ambiente com muita competição ou correu bem?
É um ambiente muito saudável, nunca senti por parte dos meus colegas alguma inveja. Todos trabalhamos em projetos interessantes. Na altura o meu chefe estava a trabalhar no programa ExoMars, que foi adiado para 2022. Tinha outra colega, também mulher, que estava a trabalhar com uma equipa nos motores do rover Perseverance. Na prática temos todos projetos tão espetaculares que não há inveja, pelo contrário há uma enorme entreajuda. Somos uma equipa multicultural. O meu chefe é inglês, essa colega que coordenou o outro projeto é meio suíça e meio americana e tenho outro colega gestor de projeto alemão. Somos metade mulheres, metade homens. É um ambiente muito diverso.
Mas a Maxon contrata com quotas de género?
Não. Foi o meu chefe que decidiu assim, gostou de nós. É a primeira pessoa a dizer que adora equipas multiculturais, com todos os géneros, pessoas de países diferentes.
Há quem diga que são equipas mais criativas, com mais recursos para ultrapassar os problemas.
Sim. E por ele puxar por isso já se começa a ver aqui na Maxon outros chefes de equipa irem à procura mais de mulheres e de pessoas que não sejam suíças para integrar as equipas. Veem o sucesso que ele tem tido (risos).
Falamos cedo, embora aí seja mais uma hora. Como é o dia a dia? Há condições para conciliar o trabalho com vida familiar?
Num dia normal começo a trabalhar entre as 6h e as 7h da manha e num dia bom acabo entre as 16h e as 17h.. Mas o horario é bastante flexivel. Devemos fazer 8h25 por dia, mas se trabalharmos mais horas num dia podemos recuperar noutro dia, o que dá muito jeito. Pelo menos uma vez por semana tiro cerca de 2h de almoço para ir correr por examplo. Esta flexibilidade ajuda muito. Depois claro, há períodos mais intensivos de trabalho, mas acho que aqui na Suiça há um bom balanço entre trabalho e vida privada. Dão muito valor à vida familia e a ter tempo para outras atividades, tal como praticar desporto. Começei a tirar o MBA há um ano e agora sim, ficou mais dificil de coordenar tudo, mas só falta um ano.
Há mais portugueses na Maxon?
Há outro português a trabalhar aqui na Maxon como gestor de projectos, na área automóvel e há muitas mulheres portuguesas a trabalhar na produção. Conheci algumas delas graças às aulas de alemão que temos em conjunto.
Quando era miúda já era engenhocas?
Não, mas gostava muito de ler sobre tecnologia. Parecia-me tudo tão surrealista, tão longe. Era muito dada a matemática, sempre adorei. Lembro-me de pedir à minha mãe nas férias para comprar aqueles livros de exercícios.
Qual era o sonho aos 11 anos quando vem viver para Portugal?
Queria ser boa aluna. Lembro-me que aos 15, 16 anos, sim, a Força Aérea era o meu sonho.
Os seus pais, como muitos portugueses, emigraram. Como veem agora as notícias?
Sentem imenso orgulho, felizes sobretudo por ter um trabalho estável e um trabalho de que gosto.
Nesta área a empregabilidade é de 100%?
Sim, todos os colegas que se formaram comigo arranjaram trabalho. Uns em Portugal, outros fora. Tenho amigos até na Nova Zelândia mas a maior parte está na Europa. Tenho colegas que estiveram comigo no CEEIa e que também estão aqui em Lucerna noutras empresas, também com projetos fantásticos.
Voltar para Portugal é uma opção?
Não num curto prazo. Quero continuar a crescer na minha carreira profissional e infelizmente não há tantas opções em Portugal. Um dia mais tarde quem sabe, neste momento não.
O que gostaria de ver cá?
Gostava de ver uma maior aposta na aviação e na indústria espacial. Já se veem empresas, mas gostava de ver mais. Temos engenheiros muito bons, mão-de-obra barata e acho que empresas nesta área conseguiriam vingar e trazer investimento para o país.
Que projetos tem em mãos?
Tenho mais projetos aqui na Maxon e estou muito entusiasmada. Ainda não posso falar sobre eles.
São secretos.
Sim. Estão naquela fase que ainda não são públicos.
Vendo as imagens do Ingenuity a voar, voou mesmo bem?
Foi exatamente como o esperado. Foi um voo de altitude, subiu três metros, rodopiou para mostrar a posição da câmara alinhada com o rover e voltou a pousar. Quase 40 segundos.
Depois deste marco, acha que alguma vez vamos ver voos tripulados em Marte?
Acho que já não falta tudo (risos). Se calhar uma década ou duas mas estamos cada vez mais perto.
E as pás aí terão de rodar mais depressa?
Vão ter de ser maiores para aguentar a carga.