Gosto de futebol, esta é a minha declaração de interesses. Tenho um clube, sofro pela seleção, pertenço a uma grande massa adepta que até pode nem perceber grande coisa do que se passa no campo mas tem a certeza de que é lá dentro que está a parte apaixonante, o futebol.
Um desporto capaz de mobilizar tanto sentimento coletivo tem poder e dá poder a quem o controla. Indústria, espetáculo ou instituição social? Tudo isso. O futebol é um facto com centralidade social e económica, não há dúvida, a questão é saber quando é que deixa de ser desporto, quando é que deixa de ser futebol.
Não é certamente quando se assume por causas sociais e políticas. O “Futebol de Causas” é uma extensão da força coletiva mobilizada pelo desporto e que não dispensa a cidadania. Vejam o documentário de Ricardo Martins sobre o percurso da Académica até à final da Taça de Portugal de 1969 na qual os jogadores, também estudantes e parte ativa na militância da causa estudantil, contribuíram para transformar o Estádio Nacional no maior comício de sempre contra o regime.
Concordo com Carlos Carvalhal quando diz que “quando queremos estudar a sociedade, basta olhar para o futebol”. Por ele passam todas as contradições da sociedade, como racismo ou o machismo, das quais, aliás, o campo muitas vezes se torna palco, fratura exposta de preconceitos e outras coisas.
Mesmo sem ter de pensar muito lembro-me de declarações recentes do treinador sub 23 do Leixões sobre Sofia Oliveira, comentadora do Canal 11, e da indignação que partilhei com muitas mulheres e homens ao ouvir que “as Sofias desta vida têm de aprender muito para andar no futebol, porque o futebol tem de ser dos homens do futebol”. Recordo-me também de quando André Ventura quis calar Ricardo Quaresma afirmando que “é lamentável que um jogador da seleção se envolva em política” porque internacional português fez o que tinha a fazer e não fugiu da sua responsabilidade cidadã na luta contra o racismo.
Se estas contradições fazem parte do futebol, não é nelas que encontramos o seu fim. Pelo contrário, são motivo de reinvenção e resistência do que é essencial no desporto. Mas há outra que tem sido ignorada ou melhor dizendo silenciada, a que opõe os interesses do capital ao bem comum que também existe no futebol.
Há muito que este desporto está mercantilizado e submetido a poderes financeiros mais ou menos obscuros. Isso cria desigualdades entre clubes, entre ligas, e é historicamente um fator de atraso para o futebol feminino (a igualdade de género também é um bem comum). Mas a beleza do futebol resiste nas lições de humildade que os clubes mais pequenos dão aos “reais madrid” desta vida, no talento puro daquela jogadora que dá a reviravolta ao marcador no último minuto dos descontos, na vontade pura daquele jogador que de tanto trabalhar parece conseguir parar o tempo – e a gravidade. A beleza do futebol está nas bancadas e na organização coletiva que permite tudo isto, dos clubes de bairro à mesa do café onde vemos os jogos especiais.
A proposta de uma Superliga europeia criada pelos clubes ricos que querem jogar entre si para ganhar mais dinheiro não é futebol, é só capitalismo. Aqueles presidentes daqueles clubes poderiam ser donos de poços de petróleo ou de bancos, porque o futebol tanto lhes faz. É repugnante, mas não é novo.
Se é espelho da sociedade, o futebol não podia ficar alheio à acumulação de riqueza e ao aumento das desigualdades que a crise pandémica provocou. O caminho que tem sido feito para a captura do futebol pelos interesses capital só podia desembocar aqui, com estrondo.
Chegamos. Isto já não é futebol e mesmo que a proposta tenha caído, o vírus que lhe deu origem continua a ser uma ameaça. O alerta foi poderoso, é a partir deste limite que temos de começar andar para trás, começar a recuperar o que nos foi roubado. Porque o futebol é nosso, dos que sabemos porque é que gostamos dele.
Deputada do Bloco de Esquerda