Era uma noite tranquila a de 30 de outubro de 1938. Tudo parecia correr com normalidade até que a rede de rádio CBS – Columbia Broadcasting System interrompeu a sua programação musical para noticiar a invasão terrena por extraterrestres. A “notícia em edição extraordinária” tratava-se da dramatização, por Orson Welles, do livro de ficção científica A Guerra dos Mundos, do escritor inglês Herbert George Wells.
Naquela hora, além de levar a que a CBS ultrapassasse a emissora concorrente NBC, a radionovela desencadeou o pânico em várias cidades norte-americanas, até porque o programa foi ouvido por seis milhões de pessoas. Destas, metade sintonizou quando o programa já havia começado, perdendo a introdução em que Welles explicava que aquele seria o 17.º segmento semanal de radioteatro.
Welles aliou a dramatização da obra literária, relatando a chegada de centenas de marcianos a bordo de naves extraterrestres à cidade de Grover’s Mill, no estado de Nova Jersey, a outros elementos-chave que conferiram credibilidade à narrativa: reportagens no exterior, entrevistas com testemunhas da chegada dos extraterrestres, opiniões de peritos e também das autoridades, efeitos sonoros, sons ambiente, gritos e até a emoção dos supostos repórteres e comentadores.
À época, a rádio constatou que pelo menos 1 milhão e 200 mil pessoas acreditaram na história narrada. Daquelas, meio milhão consciencializou-se de que o perigo era real e entrou em pânico, sobrecarregando as linhas telefónicas aglomerando-se nas ruas e até entrando nos carros e conduzindo sem rumo. Esta fuga em massa esteve associada ao desespero também dos habitantes de Newark e Nova Iorque, cidades próximas de Grover’s Mill.
No dia seguinte, o jornal Daily News resumiu, na manchete, a reação ao programa: “Guerra falsa na rádio espalha terror pelos Estados Unidos”.
Então com 23 anos, Welles reescrevera a peça radiofónica da autoria de Howard Koch, com a colaboração de Paul Stewart, baseada na obra de Wells. Assim, a sua interpretação ficou igualmente conhecida como “rádio do pânico”.
O jovem interpretou o papel de professor da Universidade de Princeton, que liderava a resistência à invasão marciana, e conseguiu criar, unindo o discurso jornalístico às artes performativas, aquele que é considerado, por muitos cientistas sociais, o programa mediático mais importante do séc. XX, sendo também ele visto como um dos melhores produtores de sempre tanto na rádio como no cinema, tendo chegado à ribalta com Citizen Kane, em 1941.
Volvidos 83 anos, os boatos parecem ganhar cada vez mais intensidade por meio das redes sociais. O “Dia Nacional da Violação”, que terá sido divulgado, pela primeira vez, na rede social TikTok, transformou-se rapidamente em “Dia Internacional da Violação” e o objetivo primordial do mesmo – permitir o abuso sexual de todas as mulheres por parte de qualquer homem – leva a que os internautas se dividam entre a desconfiança e o terror.
As primeiras referências à tentativa de celebração desta data remontam ao passado mês de março, quando a Turquia abandonou a Convenção de Istambul, o primeiro tratado vinculativo do mundo para prevenir e combater a violência contra as mulheres por decreto presidencial.
A Convenção, de 2011, assinada por 45 países e pela União Europeia, exige que os governos adotem legislação que puna a violência doméstica e abusos semelhantes, bem como a violação conjugal e a mutilação genital feminina. Os conservadores alegaram que a Convenção prejudica a unidade familiar, incentiva ao divórcio e que as suas referências à igualdade estão a ser usadas pela comunidade LGBT para obter uma aceitação mais ampla na sociedade.
Deste modo, seis homens terão aproveitado esta decisão política para motivar o abuso sexual de mulheres, captando a sua tomada de posição em vídeo, divulgando-o no TikTok e até partilhando alegadamente um manual em que os leitores poderiam aprender a perpetrar este ilícito.
Ainda que esta informação seja desmentida por alguns órgãos de informação e alvo de sérias dúvidas por parte de outros, o boato lançou a semente do ódio online e tornaram-se frequentes as publicações em redes sociais como o Twitter ou o Instagram em que o género feminino é aconselhado a ser especialmente cuidadoso e a proteger-se no próximo sábado, sendo o confinamento voluntário fomentado.
“Manter a nossa comunidade segura é a prioridade e não toleramos conteúdo que promovam ou glorifiquem atos sexuais não consensuais, incluindo violação e agressão sexual”, escreveu um porta-voz da TikTok num e-mail enviado ao USA Today. “Embora não tenhamos encontrado evidências, na nossa plataforma, de quaisquer vídeos relacionados com este assunto, a nossa equipa de segurança permanece vigilante e removeremos o conteúdo que viole as nossas políticas”, acrescentou.
Estudantes da Universidade de Exeter debaixo de fogo
À semelhança das consequências d’A Guerra dos Mundos, também o Dia Internacional da Violação parece surtir efeitos na vida real. Têm circulado online rumores conectados à existência de um grupo com mais de 100 alunos da Universidade de Exeter, no Reino Unido, que estarão a planear “violar o máximo de raparigas até ao dia 24 de abril”.
“Esta parece ser uma farsa que se originou no TikTok e, desde então, se espalhou pelo mundo, com o objetivo de causar medo e jogar com preocupações sérias e genuínas em relação à agressão sexual. Transmitimos esses boatos à polícia e aconselhamos os estudantes a ignorar os rumores e a não divulgá-los”, explicou Garth Davies, líder do gabinete de comunicação da instituição de Ensino Superior anteriormente mencionada, ao i. A seu lado, a polícia dos condados de Devon e Cornwall disse ao The Exeter Tab que está “atualmente a investigar a credibilidade do grupo”.
O que diz esta ideia da sociedade? “O conceito de boato cobre uma ampla gama de realidades: notícias falsas ou não verificadas, é claro, mas também quaisquer erros jornalísticos ou manobras de desinformação quando revelados publicamente, quaisquer preconceitos e estereótipos transformados em narrativas, algumas peças de propaganda são ambíguas o suficiente, alguns embustes que seus autores não matam, algumas lendas contemporâneas realistas e até mesmo alguns exemplos de marketing viral”, pode ler-se na entrada “Rumour” da International Encyclopedia Of Communication.
“O termo é antigo e originalmente tinha umsignificado próximo a reputação e fama. Em Roma, o boato era usado no contexto da justiça, como quando Quintilius o listou entre as ferramentas, incluindo registos, torturas, juramentos e testemunhas”, lê-se na obra mencionada.
“O rumor existe desde tempos imemoriais, foi durante séculos o principal meio de comunicação nas pequenas comunidades e as suas consequências eram circunscritas. Hoje o rumor, por via das redes sociais/media digitais, pode tomar proporções planetárias com consequências imprevisíveis e muito difíceis de controlar, como parece ser este o caso”, frisa Filipa Subtil, doutorada em Ciências Sociais pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e docente na Escola Superior de Comunicação Social, do Instituto Politécnico de Lisboa.
“Neste caso concreto, face a uma crescente sensibilidade no mundo ocidental relativa à violência de género e à crescente visibilidade que o tema tem tido nos media, a reação destes grupos/pessoas (que não se identificam, que são anónimos) com tendências homofóbicas pode ser vista como uma tentativa de contra-propaganda, tentando de uma forma desesperada, da pior forma, desacreditar e ridicularizar os que não pensam como eles”, avança a investigadora que se tem centrado na sociologia da Comunicação, na teoria social dos media nos EUA e Canadá e nas problemáticas que relacionam os media com as questões de género, domínios onde tem publicado artigos e capítulos de livros, orientado teses e organizado diversos eventos científicos.
“De qualquer modo, é preciso ser cuidadoso nas generalizações. Estamos com toda a certeza a falar de um conjunto de indivíduos muito minoritário, cujo principal intuito é lançar o pânico, a confusão na rede… Esperemos que não passe disso mesmo”, conclui a co-editora e autora de Media and Portuguese Empire e d’ A Crise do Jornalismo em Portugal, que publicou também Compreender os Media. As Extensões de McLuhan.
“Haverá seguramente uma dimensão performática nisto: esta publicitação não quer dizer que os atos sejam consumados. É uma fantasia muito comum da parte dos homens e isso não quer dizer que a concretizem”, indica, a seu lado, João Sedas Nunes, doutor em Sociologia pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, docente na mesma e investigador do CICS/NOVA nas áreas das sociologias do desporto, da juventude, do género e da inserção profissional.
“Há aqui uma grande diferença. Em primeiro lugar, eu não gosto da expressão, mas a masculinidade tóxica, de alguma maneira, aponta uma questão muito importante nas nossas sociedades que é uma espécie de cultura falocêntrica que está muito associada a uma masculinidade que se organiza em torno de uma dramática de posse”, clarifica o coordenador da Secção de Sociologia do Desporto da Associação Portuguesa de Sociologia.
“Possuir uma mulher ou um parceiro, julgo que esta dramática é transversal. A ideia passa por tomar propriedade. Tem uma dimensão simbólica e outra que se materializa. Quem viola é punido por lei, mas tem inerente uma pulsão de objetificação e acaba por ser de desumanização. Não é só não haver reconhecimento de estatuto ou de condição semelhante, mas sim de uma humanidade comum que serve de base aos seres humanos, sejam do mesmo género ou não”, argumenta o investigador.
Para Sedas Nunes, “transformar o parceiro numa coisa que se possui ou não, e que tem de se possuir para se fazer prova de que se é homem” mostra que ”estamos próximos de uma legalização do ato de violar do ponto de vista do imaginário”.
“Este universo de ficção da sexualidade, da relação entre os géneros, que passa pela afirmação destes pontos de vista, num plano simbólico muito violento, não quer dizer que se traduza num ato. Como é isto possível? Tem a ver com a disseminação das redes sociais, que permitem a democratização. E esta fez com que as fontes de controlo do discurso não se diluíssem, mas sim que se multiplicassem”, divulga o sociólogo sobre as inúmeras possibilidades de interação social promovidas pelas novas tecnologias, não colocando de parte, contudo, a noção de que “continua a haver pessoas que censuram este posicionamento, mas também aquelas que o autorizam”.
“As redes funcionam não só como um espelho que nos devolve uma imagem, mas que também a evidencia. Neste processo de alargamento, a mensagem também se legitima. Esta democratização que possibilita a quebra da fronteira entre o privado e o público de pontos de vistas ‘imorais’”, avança o coordenador e investigador principal do projecto A condição adepta em Portugal: entre gramáticas morais e disposições individuais.
“Não é a questão da impunidade, mas um grande convite a que sejamos verdadeiros. Partilhamos aquilo que estamos constantemente a reprimir”, clarifica Sedas Nunes, adiantando que “estamos muito convencidos, desde as Revoluções Liberais, de que a humanidade em comum é consensual no mundo Ocidental, mas, em muitos contextos de expressão, de personas sociais, essa propriedade humanística dos seres humanos desaparece”.
“E a relação com os outros é fundamentalmente económica, como se os outros fossem instrumentos dos nossos interesses. Como se as pessoas não fossem vistas como pessoas, mas sim como objetos do nosso desejo”, explica, não estando crente, porém, de que as mulheres serão alvo de abusos sexuais em massa no próximo sábado.
“A maior parte das pessoas sabe que deixou pistas, anunciou que faria isto e aquilo e, mesmo fazendo recurso a pseudónimos, sabe que pode ser encontrada pelas autoridades policiais”, finaliza.
A mente de quem dissemina a mensagem “Em rigor e em nome da honestidade intelectual, não é possível definir características gerais”, começa por explicar Carlos Fernandes da Silva, diretor do Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Aveiro ao i, adicionando que “os motivos destes ilícitos são variados”, sendo que estas pessoas podem padecer de “perturbação antissocial da personalidade – violam regras e costumes pelo prazer de as violar, porém imputáveis face à lei porque possuem consciência da ilicitude dos atos, abusadores sexuais – não necessariamente com patologia psicológica ou psiquiátrica, mas com desenvolvimento sociopático por identificação com valores de determinadas subculturas” ou até “pessoas que simplesmente gostam de brincar com assuntos muito sérios e que deveriam ser seriamente punidos pelas consequências dessas brincadeiras”.
Naquilo que diz respeito ao contributo destes indivíduos para a desordem social e o crescimento do temor, o psicólogo clínico e docente catedrático refere que “têm um sentimento de impunidade que difere em relação a quem o faz fora do meio virtual porque existe uma elevada probabilidade (e crença) de não ser detido e julgado”.
“Desde o desconforto e recusa aberta em participar até ao desejo de participar e promover”, declara o profissional de saúde sobre os sentimentos que poderão proliferar em quem tomar conhecimento desta iniciativa, acreditando que “mostrar medo favorece este tipo de ações criminosas”, “porém, as mulheres deverão estar atentas a comportamentos suspeitos e não circularem sozinhas”.
“Os ‘ismos’ não são a melhor forma de defender direitos (feminismos, etc.). As mulheres deverão mostrar no dia a dia que são diferentes dos homens (porque há diferenças) mas iguais em dignidade e competências”, elucida o pós-graduado em Neurociências pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, não esquecendo de salientar que esta poderá “ser uma tentativa de semear o medo via Internet”, até porque “o aumento dos movimentos políticos e religiosos extremistas pode facilitar este tipo de ilícitos”.
Mesmo que o abuso sexual feminino em massa não ocorra, Fernandes da Silva – autor dos livros Teorias da Aprendizagem e Intervenção Psicológica em Perturbações de Personalidade – diz que esta ideia mostra “que as democracias não conseguem garantir liberdades (diferentes de licenciosidade) e garantias porque amiúde são moles face aos ilícitos e aos criminosos e duras com os agentes da administração da justiça e das polícias”. Por outro lado, realça “a ignorância generalizada dos povos que se preferem a intriga social em detrimento da ciência, artes e cultura em geral”.
O posicionamento da APAV Em resposta às questões colocadas pelo i, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) diz que “tem conhecimento da onda de reações, nas redes sociais, a um alegado vídeo de apologia à violação contra mulheres no dia 24 de abril”, sendo que “o assunto está a ser comentado e a ter muita visibilidade, principalmente a nível internacional”.
“A APAV alerta que, até ao momento, não tendo informação sobre a veracidade deste vídeo nem tendo sido comprovada a origem do mesmo, a situação pode tratar-se de um rumor que está a ser amplamente divulgado através das redes sociais e que está a ter um efeito perverso: alguns intervenientes que partilham este rumor fazem apologia à violência”, esclarece, adicionando que ”a rede social TikTok, principal plataforma em causa nesta situação, manifestou publicamente não ter conhecimento do alegado vídeo de apologia à violação contra mulheres no dia 24 de abril”.
O órgão que tem como missão apoiar as vítimas de crime, suas famílias e amigos, prestando-lhes serviços de qualidade, gratuitos e confidenciais explica que “não sendo confirmada a existência deste vídeo, a APAV chama a atenção relativamente à responsabilidade que cada um tem no que diz respeito à partilha de informação online e o efeito que esta pode ter na propagação de informação não confirmada na Internet” e, neste caso, “a divulgação massiva nas redes sociais que está a ser feita a nível internacional ao invés de garantir a segurança das pessoas pode promover a criação de situações de violência”.
“Para todos os efeitos, qualquer pessoa que tenha conhecimento de conteúdo ilegal online, nomeadamente de apologia à violência, deve denunciá-lo na própria plataforma em que o mesmo se encontra e denunciar a situação às autoridades”, salienta, deixando alertas para garantia da veracidade da informação divulgada online: confirmar a fonte, o autor do conteúdo e a mensagem que o mesmo pretende passar.
“Sublinhamos a importância de que todos/as tenham conhecimento de que a violação é um crime que deve ser denunciado às autoridades. A APAV está disponível para prestar apoio através do 116 006 e dos seus Gabinetes de Apoio à Vítima”, assegura, adicionando que a Linha Internet Segura está disponível para esclarecimento e apoio ao cidadão e dispõe de um serviço de denúncia de conteúdos ilegais online. Funciona nos dias úteis, das 8h às 22h, através do contacto telefónico gratuito 800 21 90 90 e do e-mail linhainternetsegura@apav.pt.
Enquadramento penal“Não se afigura que essa iniciativa se encontre a lograr impacto em Portugal. Não obstante, a PSP manter-se-á atenta a qualquer desenvolvimento, apelando a que qualquer pessoa que seja vitimizada o comunique de imediato em qualquer Esquadra ou via 112, seja a prática concretizada ou meramente tentada”, explicita a PSP contactada pelo i.
Apesar disso, David Silva Ramalho, advogado, associado principal na equipa de Contencioso Criminal, Risco e Compliance da Morais Leitão, informa que “o Código Penal português pune, no seu artigo 297.º, a instigação pública a um crime, com uma pena máxima de 3 anos de prisão, ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
“Para o crime se ter por consumado basta que o agente, em reunião pública, através de meio de comunicação social, por divulgação de escrito ou outro meio de reprodução técnica, provocar ou incitar à prática de um crime determinado, neste caso o de violação, mas possivelmente também o de coacção sexual ou afins”, diz o assistente convidado de Direito Penal e Processo Penal na Faculdade de Direito da Universidade Lisboa, investigador no Centro de Investigação em Direito Penal e Ciências Criminais e associado do Instituto de Direito Penal e Ciências Criminais.
“Não é sequer necessário que o crime seja efectivamente praticado. Aliás, a ser praticado, é possível sustentar que a pessoa que incita possa ser considerada materialmente um instigador do crime sexual em causa, o que poderá levar a que seja punida em termos análogos aos do autor do crime”, conclui.