Reflexões a propósito de um processo


Sem olvidar ou negar os princípios da legalidade e da objetividade no exercício da ação penal, é necessário que o MP, por si próprio, comece a pensar, também, de forma mais estruturada e responsabilizante, o seu exercício, em termos estratégicos e táticos, tendo sobretudo em vista a obtenção de melhores resultados processuais concretos.


Muito se disse já e, por certo, muito se irá dizer ainda sobre o processo da Operação Marquês.

No que se tem dito, misturam-se – por vezes não tão ingenuamente como possa parecer – assuntos e problemas de natureza diversa.

Alguns podem ser analisados desde já.

 A discussão de outros está vedada, por ora, pelos menos aos magistrados.

Refiro-me, neste último caso, às decisões jurídicas e de valoração de prova tomadas pelos procuradores e pelo juiz de instrução no referido processo.

Restam, porém, muitas outras questões que podem, e porventura devem ser, desde já, abordadas por todos.  

Este caso suscita, na verdade, imensas perplexidades, mas tem, também, de suscitar propostas.

Desde logo, sobre a eficiência e efetividade de muitos departamentos que integram a organização política e administrativa do Estado.

Sabe-se sempre pouco sobre o sentido do controlo e das informações que prestam aos decisores políticos.

E, todavia, há organismos da Administração Pública que devem, por lei, informar, com objetividade, exigível ciência e rigor legal, os decisores políticos sobre as decisões que a estes compete tomar.

Se tal informação e controlo forem feitos com isenção e assumida responsabilidade e transparência, talvez não venha a haver, com tanta frequência, coragem para a tomada de muitas decisões políticas de duvidosa legalidade e de pior economicidade.

As antigas auditorias do Ministério Público (MP) junto dos ministérios chegaram a ter alguma intervenção relevante nessa matéria, nunca se tendo entendido bem, por isso, porque foram extintas.

O mesmo se diga, num outro plano, mas com o mesmo fim, da intervenção prévia e cautelar do Tribunal de Contas.

Deste processo, resulta, também, uma outra discussão, esta de natureza política.

Não, não me refiro às politiquices, cabalas e intrigas pessoais que, a propósito do processo, o comentário público desenvolve e explora à exaustão.

Refiro-me ao papel que o poder legislativo pode e deve ter no acompanhamento e resolução atempada – e por via de lei nova – dos entendimentos divergentes da jurisprudência sobre problemas com incidência direta na punição efetiva de certo tipo de crimes mais graves.

É verdade que, durante muito tempo, se preconizava que deveria caber aos tribunais superiores o papel, a seu tempo – sempre o problema do tempo –, de resolverem e estabilizarem as interpretações legais mais convenientes e adequadas à realidade.

O tempo do andamento da sociedade e da resolução dos seus problemas – e, por isso, também, o tempo da Justiça e da sua relação com a realidade – aceleraram-se, todavia.

A sociedade de informação mudou, igualmente, o palco e os atores das discussões jurisprudenciais e doutrinais.

Tornou-as acessíveis a todos, retirando-as, assim, do limbo onde os juristas – juízes, procuradores, advogados e académicos – as debatiam, deleitadamente, à margem do tempo e das consequências sociais que, em concreto, pudessem ter.

O tempo dos aprazíveis, mas socialmente pouco razoáveis, exercícios de estilo jurídico jurisprudenciais e doutrinais morreu, e disso temos todos de tomar consciência. 

Exige-se, por isso, também do poder político, um acompanhamento mais ativo dos bloqueios ou incertezas geradas pelas correntes jurisprudenciais divergentes, designadamente quando se verifica que estas persistem e têm consequências práticas graves nos processos socialmente mais relevantes.

Neste aspeto, é a Política que deve servir o Direito.

Questões como a dos prazos da prescrição de certos crimes, da sua contagem, da conexão de processos e da valoração de provas em processo penal não podem continuar a aguardar, eternamente, que a jurisprudência dos tribunais superiores, por via de recursos cruzados, se fixe de alguma maneira.

O efeito prático – e também político – de tais indefinições projeta-se na imagem da Democracia e do Estado de Direito.

Por outro lado, e porque se teima em falar ainda do MP como uma magistratura organizada e responsável institucionalmente, e não da responsabilidade deste ou daquele procurador titular de um dado processo, é necessário revisitar, urgentemente, o conceito da sua hierarquia funcional-processual.

Mais não seja, para se poder disciplinar o funcionamento das equipas de magistrados que lidam com processos complexos e que exigem a colaboração e trabalho, ordenado e coerente, de vários procuradores em simultâneo.

Sem olvidar ou negar os princípios da legalidade e da objetividade no exercício da ação penal pelo MP, é, por isso, necessário que este, por si próprio, comece a pensar, também, de forma mais estruturada e responsabilizante, o seu exercício em termos estratégicos e táticos, tendo sobretudo em vista a obtenção de melhores resultados processuais concretos.

Uma coisa é, com efeito, a escolha do mais apurado enquadramento jurídico de um conjunto de factos criminalmente relevantes, a sua ordenação nas peças acusatórias e a organização e escolha dos melhores meios de prova e de provas para a sua sustentação em juízo.

Outra, bem diferente – mas não menos importante – é, com apoio da lei, analisar e escolher estratégias processuais que tenham por base uma avaliação dos riscos concretos, designadamente quando são conhecidas divergências jurisprudenciais sobre dada matéria e existem entendimentos radicalmente diferentes nos concretos tribunais para onde a acusação vai, depois, necessariamente, transitar. 

Este tipo de análise e avaliação de riscos, na forma como se vai exercer a ação penal por parte do MP, é comum noutras paragens e nem sequer é novidade entre nós: já foi ensaiado, com rigor, êxito e com o comprometimento total da hierarquia do MP, pelo menos no chamado processo das FP25. 

Neste mesmo plano, sem menosprezar a capacidade decisória do titular de certos processos, experiências como a da sua leitura cruzada por procuradores não diretamente envolvidos na investigação e acusação – funcionando como advogados do diabo – podem ajudar os titulares dos processos a tomar as melhores opções estratégicas e táticas.

Isso acontece em outros países.

Estas e outras mudanças na organização do estilo de trabalho do MP podem vir a ser essenciais se se quiser ter em vista não apenas uma formulação juridicamente sustentável da ação penal, mas, através dela, também, a ultrapassagem de dificuldades previsíveis e a obtenção de resultados práticos e publicamente satisfatórios, no que respeita, pelo menos, à punição da criminalidade socialmente mais gravosa.

A mudança da cultura de trabalho e das práticas a ela associadas devem, assim, ser rapidamente debatidas e assumidas no interior do MP.

Se isso não acontecer, outros, sempre indignados, mas, afinal, menos interessados do que parece no bom curso dos processos e, pior, muito pouco informados e rotinados na vida dos tribunais, poderão procurar desvirtuar, inconsequentemente, o modelo constitucional desta magistratura e, com isso, também perderá a Justiça.

 

          

 

    

  

Reflexões a propósito de um processo


Sem olvidar ou negar os princípios da legalidade e da objetividade no exercício da ação penal, é necessário que o MP, por si próprio, comece a pensar, também, de forma mais estruturada e responsabilizante, o seu exercício, em termos estratégicos e táticos, tendo sobretudo em vista a obtenção de melhores resultados processuais concretos.


Muito se disse já e, por certo, muito se irá dizer ainda sobre o processo da Operação Marquês.

No que se tem dito, misturam-se – por vezes não tão ingenuamente como possa parecer – assuntos e problemas de natureza diversa.

Alguns podem ser analisados desde já.

 A discussão de outros está vedada, por ora, pelos menos aos magistrados.

Refiro-me, neste último caso, às decisões jurídicas e de valoração de prova tomadas pelos procuradores e pelo juiz de instrução no referido processo.

Restam, porém, muitas outras questões que podem, e porventura devem ser, desde já, abordadas por todos.  

Este caso suscita, na verdade, imensas perplexidades, mas tem, também, de suscitar propostas.

Desde logo, sobre a eficiência e efetividade de muitos departamentos que integram a organização política e administrativa do Estado.

Sabe-se sempre pouco sobre o sentido do controlo e das informações que prestam aos decisores políticos.

E, todavia, há organismos da Administração Pública que devem, por lei, informar, com objetividade, exigível ciência e rigor legal, os decisores políticos sobre as decisões que a estes compete tomar.

Se tal informação e controlo forem feitos com isenção e assumida responsabilidade e transparência, talvez não venha a haver, com tanta frequência, coragem para a tomada de muitas decisões políticas de duvidosa legalidade e de pior economicidade.

As antigas auditorias do Ministério Público (MP) junto dos ministérios chegaram a ter alguma intervenção relevante nessa matéria, nunca se tendo entendido bem, por isso, porque foram extintas.

O mesmo se diga, num outro plano, mas com o mesmo fim, da intervenção prévia e cautelar do Tribunal de Contas.

Deste processo, resulta, também, uma outra discussão, esta de natureza política.

Não, não me refiro às politiquices, cabalas e intrigas pessoais que, a propósito do processo, o comentário público desenvolve e explora à exaustão.

Refiro-me ao papel que o poder legislativo pode e deve ter no acompanhamento e resolução atempada – e por via de lei nova – dos entendimentos divergentes da jurisprudência sobre problemas com incidência direta na punição efetiva de certo tipo de crimes mais graves.

É verdade que, durante muito tempo, se preconizava que deveria caber aos tribunais superiores o papel, a seu tempo – sempre o problema do tempo –, de resolverem e estabilizarem as interpretações legais mais convenientes e adequadas à realidade.

O tempo do andamento da sociedade e da resolução dos seus problemas – e, por isso, também, o tempo da Justiça e da sua relação com a realidade – aceleraram-se, todavia.

A sociedade de informação mudou, igualmente, o palco e os atores das discussões jurisprudenciais e doutrinais.

Tornou-as acessíveis a todos, retirando-as, assim, do limbo onde os juristas – juízes, procuradores, advogados e académicos – as debatiam, deleitadamente, à margem do tempo e das consequências sociais que, em concreto, pudessem ter.

O tempo dos aprazíveis, mas socialmente pouco razoáveis, exercícios de estilo jurídico jurisprudenciais e doutrinais morreu, e disso temos todos de tomar consciência. 

Exige-se, por isso, também do poder político, um acompanhamento mais ativo dos bloqueios ou incertezas geradas pelas correntes jurisprudenciais divergentes, designadamente quando se verifica que estas persistem e têm consequências práticas graves nos processos socialmente mais relevantes.

Neste aspeto, é a Política que deve servir o Direito.

Questões como a dos prazos da prescrição de certos crimes, da sua contagem, da conexão de processos e da valoração de provas em processo penal não podem continuar a aguardar, eternamente, que a jurisprudência dos tribunais superiores, por via de recursos cruzados, se fixe de alguma maneira.

O efeito prático – e também político – de tais indefinições projeta-se na imagem da Democracia e do Estado de Direito.

Por outro lado, e porque se teima em falar ainda do MP como uma magistratura organizada e responsável institucionalmente, e não da responsabilidade deste ou daquele procurador titular de um dado processo, é necessário revisitar, urgentemente, o conceito da sua hierarquia funcional-processual.

Mais não seja, para se poder disciplinar o funcionamento das equipas de magistrados que lidam com processos complexos e que exigem a colaboração e trabalho, ordenado e coerente, de vários procuradores em simultâneo.

Sem olvidar ou negar os princípios da legalidade e da objetividade no exercício da ação penal pelo MP, é, por isso, necessário que este, por si próprio, comece a pensar, também, de forma mais estruturada e responsabilizante, o seu exercício em termos estratégicos e táticos, tendo sobretudo em vista a obtenção de melhores resultados processuais concretos.

Uma coisa é, com efeito, a escolha do mais apurado enquadramento jurídico de um conjunto de factos criminalmente relevantes, a sua ordenação nas peças acusatórias e a organização e escolha dos melhores meios de prova e de provas para a sua sustentação em juízo.

Outra, bem diferente – mas não menos importante – é, com apoio da lei, analisar e escolher estratégias processuais que tenham por base uma avaliação dos riscos concretos, designadamente quando são conhecidas divergências jurisprudenciais sobre dada matéria e existem entendimentos radicalmente diferentes nos concretos tribunais para onde a acusação vai, depois, necessariamente, transitar. 

Este tipo de análise e avaliação de riscos, na forma como se vai exercer a ação penal por parte do MP, é comum noutras paragens e nem sequer é novidade entre nós: já foi ensaiado, com rigor, êxito e com o comprometimento total da hierarquia do MP, pelo menos no chamado processo das FP25. 

Neste mesmo plano, sem menosprezar a capacidade decisória do titular de certos processos, experiências como a da sua leitura cruzada por procuradores não diretamente envolvidos na investigação e acusação – funcionando como advogados do diabo – podem ajudar os titulares dos processos a tomar as melhores opções estratégicas e táticas.

Isso acontece em outros países.

Estas e outras mudanças na organização do estilo de trabalho do MP podem vir a ser essenciais se se quiser ter em vista não apenas uma formulação juridicamente sustentável da ação penal, mas, através dela, também, a ultrapassagem de dificuldades previsíveis e a obtenção de resultados práticos e publicamente satisfatórios, no que respeita, pelo menos, à punição da criminalidade socialmente mais gravosa.

A mudança da cultura de trabalho e das práticas a ela associadas devem, assim, ser rapidamente debatidas e assumidas no interior do MP.

Se isso não acontecer, outros, sempre indignados, mas, afinal, menos interessados do que parece no bom curso dos processos e, pior, muito pouco informados e rotinados na vida dos tribunais, poderão procurar desvirtuar, inconsequentemente, o modelo constitucional desta magistratura e, com isso, também perderá a Justiça.