Como bruta aparição que foi – e se ainda o é, ou vai sendo, então não se pode dizer que fez já tudo o que tinha a fazer – o surrealismo, na mais leve e pior das hipóteses, soube lavar os dentes, livrar a bocarra que os exibe tanto dos restos pútridos que trazia agarrados, carne putrefacta que se alojara há muito, e que até as aves recusavam. Assim, na poesia e à volta, a mordida resultava um tanto desencontrada. O surrealismo, no mínimo, veio baralhar as coisas, para que “espécies que pareciam em vias de fixação definitiva” ganhassem esse tumulto das sombras que um fogo de protecção nalguma caverna lança nas paredes, para terror e fascínio dos que ali se resguardaram. E não bastou um simples dentífrico, foi preciso recorrer a um imaginário ácido, desabrido, ferocíssimo para que o ar circulasse entre essas criações que, mesmo na sua sumptuosidade barroca, não faziam mais que alimentar com gosto a “própria bicharia imunda”. André Breton quis “emancipar a todo o custo a poesia dos seus controles parasitários”, para que esta assumisse de novo o propósito de responder por essas criaturas de grande porte que o génio às vezes põe a funcionar, e, ainda que de forma um tanto acidentada, numa debandada que produziu demasiados atropelos, pelo menos, quem encostasse o ouvido no chão terá tido a sensação e o sufoco de sentir sobre a terra o peso desse animal fabuloso que, com a violência aninhada entre os cornos, “quando investiu a sua cornada fez estremecer o mundo abrindo clareiras”.
O surrealismo, enquanto prática ardente, exige um certo escrúpulo do leitor, que deve começar por libertar-se do seu cinismo, e, por isso, é-lhe confiada essa antologia que faz cada um buscando os sinais animadores dessa “bruta aparição do de repente”. “Porque as imagens mais vivas são as mais breves”, diz-nos Breton, essas servem também como sinais de uma consciência mais vasta, um fragor colectivo, o qual desde logo contraria a inépcia redundante destes sorumbáticos rigores do Inverno individualista em que nos vemos mergulhados. Mais do que o mero exercício de garimpar imagens sulfúricas, mais do que um deleite extático, ou o assinalar desses artigos exóticos traficados no mercado negro, este movimento estava empenhado em desbravar o continente submerso da imaginação, e, ecoando o repto de Lautréamont, a poesia devia assim ser feita por todos, ou, pelo menos, por uma intrépida tripulação, dando caça a um ser impossível. Havia ali um conteúdo de aventura que de nenhuma maneira se deixa confundir, hoje, com “esta música morna que escorre agora peganhenta pelos livros progressistas” (Ernesto Sampaio). “Não falo das macaquices destinadas a fazer funcionar o rebanho”, asseverava Breton, deixando claro que havia que fazer explodir “a floresta petrificada da cultura humana”, a qual conta igualmente com os reaccionários conscientes e com os apóstolos do progresso social que se revelam, de facto, imobilistas ferozes, contentando-se com as suas inúteis e extenuantes querelas. “A vida, hoje, é só uma interjeição”, escreveu Keats. “Um ‘oh!’, um ‘ah!’, de dor ou alegria,/ Ou um ‘ha, ha!’ ou ‘bah!’, um ‘ufa!’ ou ‘arrh!’,/ Que a última é a melhor para expressar.” E para contrariar isto nada melhor do que uma poesia que não distinga a tradução encantada do próprio ferimento que provoca. Dói-lhes mais que o espinho vá na parte por onde se gostaria de segurar a rosa. E talvez só isso ainda nos livre de ver a poesia transformada num ofício de floristas.
Já muito se falou dos tempos de indigência, do sentido que ainda pode fazer a poesia, dos cacos que vale ou não a pena colar, mas é preciso acrescentar à indigência a velhacaria, como fez Breton, e essa forma de opressão que conduz a uma carnificina, esses campos de concentração do mercado que reduzem o homem a um ser nevrótico, solúvel, perfeitamente inábil no que respeita à frequência espiritual. Como insistia entre nós António Maria Lisboa, “a poesia nada tem a ver com a realidade (no sentido vulgar de realidade)…” E às vezes mais convém fugir o quanto antes à reflexão, entrar no campo envolvente de um sonho definitivo, lançar-se impetuosamente nos pântanos de uma perpétua insónia.
É assim que vemos surgir por cá, sem ser tarde nem cedo, com uma pontualidade soberba, uma espantosa e vastíssima antologia de poemas surrealistas escritos em língua francesa da responsabilidade da poeta Regina Guimarães. Coube-lhe a selecção dos textos, e uma breve nota de apresentação ficou a cargo do seu companheiro de sempre, Saguenail, a qual nos situa, estabelecendo as coordenadas essenciais nomeadamente no que toca à importância da “escrita automática” como efeito desencadeador, esse “acto de surrealismo absoluto”, mas também nos adianta que a maioria destes autores, “apesar de sensíveis ao alargamento das possibilidades de enunciação proporcionado pelo ‘ditado do inconsciente’, não prosseguiram essa concreta prática”. Esta nota prova que mais vale curto e grosso, para resumir a coisa e aliciar o leitor, do que pontificar por aí, dispersando-se numas trapalhadas pretensiosas.
Saguenail esclarece que “é ao nível dos engajamentos éticos e políticos que o grupo se consolida ou que as exclusões são sentenciadas – a maior parte dos poetas que entram em comunicação com Breton passam pelo surrealismo mas não se mantêm no grupo, preferindo prosseguir uma carreira em vez de se sujeitarem a discussões quotidianas e a julgamentos irrevogáveis”. Assim, “as rupturas sucedem-se, com mais ou menos alarido, sendo que os motivos ideológicos invocados frequentemente encobriam dissensões pessoais e privadas”. Mas se a natureza humana se mete pelo meio e acaba por dar conta de tudo, dos grandes projectos e planos ainda subsiste um resíduo, e houve certamente um abalo na hierarquia dos valores intelectuais, como sublinha Saguenail, permitindo restituir à infância e à prática de jogos diversos um lugar preponderante, “e sobretudo libertar os enunciados, antes de mais nos textos poéticos, das cangas e das cadeias sintáxicas e silogísticas”.
Criando um espaço onde circulavam desenraizadas árvores de imagens, essa força “estupefaciente” alterou as proporções do que se esperava encontrar nas veias do canto poético, esses sangues que agora se lançavam sobre novos e mais largos horizontes, munidos do seu pé de cabra, para escancarar as vistas, dando trabalho a um poderoso sistema de analogias, de tal modo que a capacidade de libertar o espiritual e, num mesmo passo, o material são traços comuns que fazem com que os autores recolhidos nesta antologia pareçam muitas vezes falar a uma só voz, e o grito chega realmente a ser avassalador. É esse o efeito mais produtivo da presente antologia, e o qual a reveste de uma actualidade formidável num momento em que a poesia se excedeu na vulnerabilidade das desordens de emoção de cada um, exprimindo um mal-estar sem particular gravidade ou peso, que chega a confundir-se com meras interjeições, num lirismo ulceroso, tantas vezes patético, mesmo que se prescrevam altas doses de ironia e outros barbitúricos próprios de uma época furiosamente cínica. Aqui, pelo contrário, estamos perante um caudal imenso, uma amostra ruidosa, rejubilante e irada, um rio que avança erodindo as margens, com quase centena e meia de autores, boa parte deles obscuros ou desconhecidos do leitor português, estando os textos balizados entre 1925 e 1966, abrindo o livro de registos de passagens e pernoitas de todos aqueles que “se aproximaram ou entraram em comunicação com os surrealistas parisienses”. Trata-se de um livrinho que, tendo embora proporções modestas, em papel reciclado, com uma gramagem bastante leve, além de bojudo, se o agitarmos dá a sensação de que está vivo e larga uma quantidade absurda de insectos com asas mais ou menos exuberantes, da traça à borboleta mais rara. “Cabe ao leitor navegar por entre esses atóis poéticos – errando de poema em poema, pois a poesia em dose demasiado alta, como qualquer droga, é indigesta – e descobrir, ao sabor das imagens propostas, as suas preferências”, diz-nos Saguenail no remate da sua nota. O que se segue é um bulício enorme, e sem fracções bem definidas, o rio galga as suas margens, os uivos entram uns pelos outros em vez de apenas se revezarem, e se há tantas páginas que nos aparecem com um fogo já consumido e num tom meio histórico, meio embaraçado, tantas destas palavras parecem realmente ter escapado de bocas tortas, capazes de provocar calafrios no público que, hoje, deixou de se virar para a poesia quando sente despertar uma fome total do corpo e do espírito.
Enquanto colecção de registos imponderáveis, esta antologia salva-se menos pelas páginas em que pulsa um coração com a sua ordem de degredo, com a sua forma de afogar o paraíso no inferno e vice-versa, mas como uma mão firme que agarra e arranca uma mecha de cabelos, colhe dessas audácias que não olhavam a meios, essa forma de beleza monstruosa pela forma como se mantém fresca e escapa aos rituais da exaustão. Apanhamos aqui visões que se perderam não se sabe em que amorável futuro, um futuro que já não chegaremos a merecer. “Nada me prende aqui nem mesmo o futuro”, ouve-se da boca de um logo no início, um que deixa ainda um dedo apontado aos “capitães do hábito”. Outro diz-nos que “as pedras são entranhas” e que “as espinhas têm um rombo de casco”. Esse ainda pede a alguém que lhe cozinhe um trovão: “Encerra-me os tremores de terra numa gaiola e colhe-me um ramo de relâmpagos.” Há receitas para tudo espalhadas por estas páginas enquanto a cabeça se deita sobre a mesa onde a humanidade inteira soçobra. “Em todos os balcões da terra se erguem/ copos arrancados pela raiz,/ o poeta sente o seu pensamento/ e o seu sexo abandoná-lo.” Aqui vive-se na espera de um dia muito raro, com uma sede absurda de linhas imortais, enquanto se vai destilando o clarão das luas a envelhecer. E se os antigos regressam para cuspir e se ouve tocar o sino dessas saídas da escola em pleno mar, sente-se aqui aquele indecifrável cheiro que treme no meio dum quarto prometido aos ventos.
Dá gosto avançar imundamente por estas páginas, puxar, cortar, coser à mão, levantar essas imagens que cheiram a carne e aos rumos da natureza. E a poesia salva-se melhor nestes jogos, do mesmo modo que brincar só se brinca com o fogo, e que, como nos diz outro destes poetas, “por vezes é preciso preferir os fazedores de versos aos poetas” e reconhecer que “a poesia está alhures”. É uma voz entre tantas que nos diz que é uma grande virtude acreditar na improvisação, adiantando que “a obra de arte é o nosso castigo”. Estamos todos há demasiado tempo de castigo nessa absurda ficção. Quer dizer que perdemos o nosso tempo a “roer os velhos ossos dos seres que vivem um por um”, em vez de nos entregarmos por igual a amores e venenos, de tal modo que “A rosa já nada espera/ da sua época// Os amantes já não assombram/ os lugares suscitados/ pelo seu perfume// O infinito está sem forças”… Uma poesia que não seja sobre a tragédia da esperança que sobrevive em nós apenas nos entrega à paixão da morte dos seres que não esperam voltar a amar. Breton acreditava que “é no mais alto período do amor electivo por um ser que se abrem as comportas do amor pela humanidade”, adiantando que “esse amor, como é evidente, não se refere à humanidade como ela é, tem que ver sobretudo com a vontade activa de a transformar, com o que ela pode vir a ser”. E como nos diz Ernesto Sampaio, o que havia em Breton, o que os seus parceiros e sequazes souberam ir resgatando, é essa fé e confiança inabaláveis “no futuro humano tal como o concebiam os utopistas do século XIX”. É um passo em frente com um vigoroso balanço, um enfrentamento animado pelos espíritos que, ao longo da história, e contra ela, mais remaram contra a maré cheia do conformismo, da opressão e da miséria. É isso que torna o surrealismo algo intolerável para o gosto dos nossos dias, e é por isso que esta antologia nos apanha como uma insurreição, mesmo ou sobretudo por nos chegar às mãos sem nenhuma pompa, numa edição modestíssima, traduzida por uma poeta ferozmente comprometida com as suas recusas, de tal modo que estas ganham o sabor de verdadeiras afirmações, e feita à mão, em Via Meã, por um editor que se aguenta no fio para se ir dando folga nos “contra-moldes anti-rato e anti-piolho”, preferindo a penúria à miséria confortável dos nossos tempos.