José Sócrates tem razão!


O país estava diferente, mas o Partido Socialista também. Havia um novo perfil de militância, de abordagem da participação, mais pragmática que ideológica, formatada e consolidada pelo exercício do poder com maioria absoluta.


A sociedade portuguesa está cada vez mais tribalizada, enleada em maniqueísmos, e os partidos ou refletem ou induzem essa realidade de intolerância com a diferença, a esfera de liberdade de expressão do outro e tudo o que fuja aos padrões vigentes. Tribalismos e distorções à parte, a invulgaridade das evidências do caso concreto, ainda não julgado definitivamente, falam por si. Não eram no passado e continuam a não ser no presente o meu padrão de referência, se quiserem de ética republicana, de sentido de exercício de funções públicas e de modelo de vida. Mesmo que há uma década não exerça funções públicas e há sete esteja exclusivamente no setor privado, afastado da política ativa e da vida partidária, sem qualquer intenção de regresso.

A questão da razão invocada remete-nos para o passado, para o tempo em que “isto” ainda não tinha começado, quando o Partido Socialista tinha perdido as eleições de 2011 para a direita e escolhido uma nova liderança para um novo ciclo.

Não há nenhum jogo floral de arremesso público de arrufos ou de esboço de demarcação que supere a realidade dos factos, com provas materiais de sobra que permite a conclusão de estarmos a assistir a uma guerra de mandantes, sobretudo para português ver, em que uma das partes não terá cumprido a sua parte do acordo.

António Costa fez parte dos governos de José Sócrates e boa parte dos participantes nos governos deste integram o atual Governo, com a diferença de que o ex-primeiro-ministro, com tudo o que se possa dizer, tinha uma visão para o país, além da gestão corrente da conjuntura, e deixou marcas positivas nas novas tecnologias e nas energias renováveis.

Depois da queda do Governo, da subscrição do memorando da Troika pelo PS e das legislativas de 2011, o PS teve uma nova liderança, com uma nova perspetiva sobre o passado governativo e sobre o posicionamento na sociedade portuguesa, num contexto de fortes condicionamentos pela intervenção dos credores internacionais e pelos compromissos assumidos.

O país estava diferente, mas o Partido Socialista também. Havia um novo perfil de militância, de abordagem da participação, mais pragmática que ideológica, formatada e consolidada pelo exercício do poder com maioria absoluta. Proliferavam poderes informais, paralelos, musculados, forjados no exercício de poder que, apesar das deliberações formais dos militantes e da legitimidade democrática subjacente, foram incansáveis no desgaste real e digital à nova liderança política, aduzindo dificuldades na observância dos compromissos do PS com a troika e desestabilizando as propostas políticas, sempre com o azimute orientado para a promoção do atual primeiro-ministro.

O mesmo poder de fogo político que fora usado contra os adversários de outros partidos e da sociedade, formatados no exercício governativo de José Sócrates e em pilares do poder autárquico da capital, esteve orientado para fustigar a nova liderança, articulando-se em ações de enfraquecimento, de desestabilização e de descredibilização do poder legítimo no interior do PS.

A relevância do contributo de Sócrates e do seu universo para a empreitada que alavancou a tomada de poder no interior do PS em 2013, com recursos próprios e pontos de apoio na designada sociedade civil, dos comentadores do regime a outras expressões que gravitam em redor dos corredores do poder e do dinheiro, certamente fundamenta a desilusão do anterior com o atual primeiro-ministro.

E quando, resgatamos do esquecimento uma das principais críticas à liderança de António José Seguro, faz-se ainda mais luz perante a gravidade do incumprimento. “Faltava defesa da governação e da herança de José Sócrates”, diziam alguns daqueles que prontamente se demarcaram em 2014 e se indignam agora. E há mesmo quem, sem pudor e apostado no virtuosismo da memória curta, sublinhe a genialidade da demarcação do “à justiça o que é da justiça”, aquando da detenção, e a excelência do cordão sanitário do PS face ao caso concreto, agora já com recaídas ligeiras de alguns.

Por isso, o título deste artigo, não transporta nenhuma apreciação sobre o processo judicial, antes sobre o mercantilismo político dos compromissos. José Sócrates parece ter razão. Alguém cumpriu, tudo fez para alavancar o golpe e alguém está em incumprimento, chegado ao poder, esqueceu-se da relevância do contributo do mandante anterior e da sua envolvente. Noutros planos era grave, quiçá fatal, em Portugal, nem tanto.

O drama é que a realidade concreta, as narrativas verbalizadas, os arrufos públicos e os arrependimentos tardios projetam-se numa comunidade fustigada pelos impactos negativos da pandemia, pelas expressões disruptivas do funcionamento do Estado e da sociedade, pelo deslaçar de valores e princípios mínimos e pelo desfasamento das respostas simples para problemas complexos. Um maná de oportunidades para os vários “ismos” e para os adversários do Estado de Direito Democrático. Fingir que não se passa nada ou entreterem-se em jogos florais de mandantes, não vai resolver nada, só adensar os problemas, contribuir para o alheamento e a pulverização do funcionamento das instituições e da relação dos cidadãos com elas. É mais do mesmo quando precisávamos de líderes, acima disto tudo, além do turno. É pedir demais.

NOTAS FINAIS

BRINCAR COM COISAS SÉRIAS. A emergência e proteção civil continua a ser palco de uma imprevisibilidade irresponsável, desgarrada e desmobilizadora. Estamos a mudar o modelo de organização da resposta de dois em dois anos, com soluções desgarradas dos restantes pilares que intervêm na resposta, com instabilidade e injustiças nas carreiras, certamente com custos financeiros dos ziguezagues. Mudanças permanentes, impedem a geração de rotinas e desmobilizam os operacionais.

REBALDARIA JURÍDICA. É o vale tudo jurídico e afins. Nos Açores e na Madeira, parece que querem aprovar legislação que contraria a Constituição e o Estatuto das Regiões, com a anuência do Representante da República e o relaxo de quem jurou cumprir a Constituição, o Presidente da República. É sobre a criação do Provedor Regional dos Animais. Na República, na emergência e proteção civil, sobre os centros de meios aéreos, há diretivas a sobreporem-se aos decretos-lei. Uma selva!

 

Escreve à segunda-feira