Negócio que não existiu ilibou Sócrates

Negócio que não existiu ilibou Sócrates


O juiz Ivo Rosa aceitou no despacho de instrução da Operação Marquês a versão dos arguidos sobre origem dos seis milhões que o MP acredita serem ‘luvas’ da OPA à PT. O projeto milionário em Angola continua a não passar de um terreno baldio onde o lixo se acumula.


O juiz Ivo Rosa considerou credível a versão do empresário angolano Hélder Bataglia que diz ter emprestado (sem qualquer aval ou documentação) seis milhões de euros a José Paulo Pinto de Sousa, primo de José Sócrates, dos quais só seria ressarcido oito anos mais tarde, através de um negócio numas salinas em Benguela, Angola – contrariando assim o Ministério Público (MP), que considera que esse dinheiro foi, na verdade, o pagamento de ‘luvas’ de Ricardo Salgado ao antigo primeiro-ministro como contrapartida ao chumbo da OPA [Operação Pública de Aquisição] da Sonae à Portugal Telecom (PT), em 2006.

Mas há um problema na versão que o juiz de instrução validou: o negócio das salinas nunca existiu, foi apenas uma forma de a empresa de Bataglia ir buscar centenas de milhões de euros ao BESA e até fez parte, por isso, do relatório de uma auditoria feita pela consultora KPMG quando o banco angolano faliu. Nesse relatório são identificadas cinco transferências de créditos da Escom (na altura do Grupo Espírito Santo) para outras tantas sociedades-veículo, relativas ao financiamento de 500 milhões de dólares feito pelo Banco Espírito Santo de Angola (BESA). Essas transações, efetuadas todas num único dia, tiveram como finalidade, segundo a consultora, criar um perdão de dívida encapotado à Escom, presidida por Bataglia (na sequência da situação financeira aflitiva em que o GES já se encontrava).

 

Que se passou com as famigeradas salinas dos Pinto Sousa?

A Escom teria adquirido à família Pinto de Sousa, a 3 de março de 2009, 70% do terreno das salinas (ficando o resto nas mãos dos irmãos José Paulo e António Manuel Pinto de Sousa). A entrada da Escom dar-se-ia por 15 milhões de euros, valor verdadeiramente exorbitante, uma vez que a quota adquirida de 70% da sociedade correspondia a um milhão e cinquenta kwanzas (cerca de 10 mil euros). A justificação consistiria no potencial do terreno para a construção de um projeto imobiliário, tendo para o efeito surgido a empresa Condomínio Residencial Benguela Bela Vista, Lda., por associação entre a Escom Imobiliária e a António Pinto de Sousa, Lda. (a sociedade da família Pinto de Sousa).

Contudo, nem a construção era permitida no terreno das salinas – que o Estado angolano considerava área protegida, na medida em que a produção de sal, deficitária no país, é considerada crucial para a economia nacional –, nem o débil panorama do mercado imobiliário em Benguela caucionava investimento tão especulativo. Para o projeto avançar, seria necessário desmantelar as salinas para outro local, operação para a qual estavam reservados três milhões.

A solução foi encontrada num novo terreno localizado na região do Tchiome, na Baía Farta, 40 quilómetros a sudoeste de Benguela. Para tal, foi constituída outra firma por quotas, denominada precisamente Tchiome, cujos sócios eram José Paulo e um sobrinho do homem da Escom, Miguel Bataglia.

O presidente da Escom aguardava, ansioso, o decreto presidencial que lhe daria ‘luz verde’ pela concessão daqueles terrenos, permitindo incluir o projeto do Tchiombe na ‘marosca’ que serviria para concretizar no mesmo dia, 28 de junho de 2013, junto do BESA, o plano para transferir a dívida da Escom para cinco novas entidades.

Na véspera, Hélder Bataglia, que ainda não tinha o negócio das salinas concretizado com a família dos Pinto de Sousa, pediu com urgência a José Paulo, na altura em Portugal, que se deslocasse a Angola para assinar – como se comprova, aliás, por um SMS remetido por José Paulo ao irmão António Manuel Pinto de Sousa, que dizia «o negócio está fechado».

A Escom libertava-se assim de compromissos financeiros, penalizando a prazo as contas do BESA. A manobra passou por uma venda fictícia das salinas a uma das cinco empresas-veículo que ficaram com a dívida da Escom – a Enignimob – Administração e Investimento em Bens Imobiliários, S.A. Para a Escom obter um crédito junto do BESA no valor de 113 milhões de dólares, a sociedade presidida por Bataglia anexou ao processo bancário uma escritura em que as quotas da sociedade António Pinto de Sousa, Lda. eram transferidas para a Enignimob.

No entanto, com a Escom já de dinheiro na mão, uma nova escritura revelaria que os terrenos nunca tinham saído da sua esfera: cinco meses depois da concessão do empréstimo, os mesmos terrenos apareceriam em nome de outra empresa, a Porto Velho, Lda., que tinha como sócios-gerentes José Paulo e o advogado português Jorge Vieira. Seriam estes os novos parceiros da Escom, os quais, numa alteração escritural outorgada em cartório em novembro desse ano de 2013, cediam novamente a quota transacionada em junho à sociedade liderada por Hélder Bataglia.

Todo este plano era dirigido a partir de Lisboa pelo homem forte do Banco Espírito Santo (BES), Ricardo Salgado. Isto mesmo se comprova numa escuta telefónica de março de 2015, ignorada pelo juiz de instrução Ivo Rosa, em que Luís Horta e Costa, ex- administrador da Escom, confirmava a João Salvado, o homem que substituíra entretanto Bataglia, que apenas fizeram «o que foi pedido à administração para fazer e que não fizeram nada sem a autorização do acionista maioritário» (o Grupo Espírito Santo, na altura), uma vez que era «bom vender aquilo bem, que era a forma de abater a dívida no BESA».

Foi com o projeto do Tchiombe que Hélder Bataglia justificou ao juiz os seis milhões que recebeu como pagamento do suposto empréstimo, feito em 2006, a José Paulo. O então presidente da Escom diz ter sido ressarcido desse montante através dos 50% que José Paulo detinha na sociedade que explorava as salinas, no montante de 4,5 milhões de dólares. Ainda assim, Bataglia esclareceu, no entanto, que as referidas salinas nunca chegaram a ter uma efetiva exploração por falta do financiamento necessário para o efeito.

Criaram-se assim realidades paralelas, que com o passar do tempo se atropelariam. Nem o projeto do condomínio da Bela Vista que pressuponha a construção de um empreendimento residencial de luxo, nem o projeto das salinas no Tchiombe vieram a conhecer de facto a luz do dia, apesar do duplo financiamento da Escom e do BESA. Nem este alguma vez fora o seu desígnio: o projeto do Tchiombe, para onde seriam transladadas as salinas dos Pinto de Sousa, foi desenhado por uma consultora, chamada Eaglestone, liderada por Pedro Ferreira Neto, curiosamente administrador da Escom (nomeado para a área financeira da empresa por Ricardo Salgado). Numa interceção telefónica em 2015, foi o próprio Pedro Neto quem, em conversa com um subalterno que o informava que José Paulo queria saber «quanto seria o valor do goodwill do projeto para negociar com o investidor», destruiu a ficção, às gargalhadas: «Em Angola, é frequente venderem-se projetos com goodwill que não existem».