A ciclovia da Avenida Almirante Reis está a sofrer algumas alterações na sequência da contestação de comerciantes e moradores, bem como da avaliação feita pela Câmara Municipal de Lisboa. Contudo, as queixas continuam e já existe a promessa de levar o caso à Justiça.
As obras já começaram, a atmosfera é invadida constantemente com o barulho das buzinas de carros e sirenes dos veículos de emergência. Os acidentes aumentam, os negócios fecham. A atual ciclovia com dois sentidos, que ocupa uma via de trânsito, será substituída por duas pistas com sentido único, uma de cada lado do separador central da Avenida Almirante Reis. Mas o que significa isso?
Os moradores contestam, os comerciantes desesperam e a Câmara Municipal defende-se. A Avenida Almirante Reis foi uma das selecionadas para agregar a grande rede ciclável, com duas centenas de quilómetros, num investimento a rondar os 30 milhões de euros pela CML. Mas aquilo que deveria ser uma medida direcionada para as preocupações ambientais e ecológicas está a tornar-se numa nuvem negra sobre aqueles que a ocupam. Peões atropelados, ambulâncias a circular na ciclovia, ciclistas que não cumprem as normas da estrada e um grande vazio de respostas. É esta a descrição dada por muitos moradores e comerciantes que, desde cedo, contestaram a criação da ciclovia naquilo que consideram “o seu bairro”.
O TRÁFEGO PREOCUPANTE E A AUSÊNCIA DE ESTACIONAMENTO “Nós só soubemos desta obra quando efetivamente começaram os trabalhos (…). Só depois da obra feita é que nos vieram perguntar o que é que nós achávamos (…). Isso para mim é um gozo (…). A casa começa-se pelas bases e não pelo telhado”, exalta Armandio Ferreira, sócio gerente da Pastelaria Luso Americana da Avenida Almirante Reis, em declarações ao i. A primeira contestação prende-se com isso mesmo: a falta de informação, a falta de transparência e a realização destas obras “à socapa de toda a gente”, tal como alerta ao i Luís Castro, fundador do grupo Vizinhos de Arroios e presidente da Associação Moradores de Arroios. Para o morador da avenida esta já estava nos limites da sua capacidade em período pré-pandemia e, portanto,“nós supusemos logo que com aquele modelo de ciclovia, na altura o bidirecional, não fazia sentido”. Mesmo em situação pandémica, em que o trânsito caiu drasticamente, “eram muitos os engarrafamentos a horas que nem sequer se justificam, de manhã, à hora de almoço e a ciclovia veio piorar isso”, conta.
A criação da ciclovia bidirecional levou a supressão de inúmeros lugares para estacionamento e dificultou a paragem para cargas e descargas que acaba por dificultar a vida quer dos comerciantes que querem fazer cargas e descargas de produtos, quer dos hotéis que necessitam de um lugar seguro para a paragem de autocarros e a descarga de passageiros, quer dos condutores de autocarros e das pessoas que os utilizam. Os clientes que outrora paravam o carro em frente às lojas, deixaram de aparecer, “estou aqui desde as 9 da manhã e a senhora foi a primeira pessoa que entrou na loja. Foram 56 anos de trabalho e nunca vi isto como vejo agora. Vou ter de fechar, vou ter de fechar portas. Não há condições para ninguém. Os clientes que vinham antigamente já não vêm, pois claro, com a avenida nestas condições”, lamenta Rui Nunes, proprietário da loja de móveis.
Contudo, Miguel Gaspar, vereador da mobilidade, discorda, afirmando que “a criação de melhores condições para as pessoas circularem de bicicleta por norma, pelo mundo inteiro, promovem o fomento do comércio local”. “As pessoas vão mais vezes ao comércio local, por uma razão muito simples, os lugares de estacionamento que existem para carros são limitados e, por isso, de bicicleta é muito mais fácil nós pararmos para aceder às lojas”, explica. O vereador dá o exemplo da Avenida do Duque de Ávila, onde a transformação do comércio foi fruto das ciclovias que lá foram feitas, e da Avenida da República, onde “o comércio faturou acima da média da cidade após a criação da ciclovia”. “Exemplos existem e, por isso, promover a bicicleta é promover o comércio local”, declara.
Segundo Armandio, a avenida já tinha sofrido um grande impacto negativo com as obras do metro de Arroios e a ciclovia só veio agravar a situação: “No primeiro dia em que abriram as esplanadas, eu tinha clientes a almoçar cá fora e o indivíduo veio com a máquina no chão a fazer barulho e muita poeira. Pedi-lhe encarecidamente para parar, ao que ele me respondeu que cumpria ordens e o podia fazer. A meio da refeição os clientes pediram a conta e foram embora, sem comer o que tinham no prato. É isso que se está a passar aqui”, comunica o proprietário da pastelaria luso-americana.
A atual ciclovia com dois sentidos que ocupa uma via de trânsito vai ser substituída por duas pistas com sentido único, uma de cada lado do separador central. Miguel Gaspar explica que no novo desenho proposto para o projeto, cada via para bicicletas terá 1,70 metros de largura e , na prática, “isto deve significar que os automóveis terão mais espaço na via ascendente”. No entanto, voltam a perder espaço na via descendente.
Para o vereador esta solução tem como intuito trazer uma nova flexibilidade, pois “em caso de perturbação do trânsito vai ser possível um carro contornar”. “Esta adaptação surgiu dos resultados obtidos numa lógica de avaliação (…) Ao avaliarmos a ciclovia percebemos onde é que se poderia melhorar e é exatamente isso que estamos a fazer, a adaptá-la, otimizando as suas condições”. O objetivo é ligar esta ciclovia à rede já existente, neste caso à Avenida Guerra Junqueiro e ao Martim Moniz, já que a ciclovia tem o seu fim na Praça do Chile.
As alterações que estão a ser feitas prendem-se numa separação dos sentidos das bicicletas, “ao criar um canal de cada um dos lados, a segurança será acrescida já que a velocidade de subir e descer a avenida é diferente”, afirma. Além dessa separação de sentidos, o vereador acrescenta que estas alterações colmatam as queixas relativas ao espaço na faixa de rodagem “de maneira a ser possível em caso de avaria, ou de paragem de autocarro, se possa encostar”.
Mas, para os comerciantes, esta explicação não é clara. “Eu já ouvi imensas coisas sobre esta alteração da ciclovia e isso é mais uma prova de que não somos informados como deve de ser. Primeiro pensámos que iriam retirar a ciclovia desta faixa e colocá-la na faixa descendente, depois percebi que afinal vão pôr uma via ascendente e outra descendente. Não sei, não percebo como é que as coisas são feitas desta maneira”, desabafa Ana Lúcia Batista, moradora na avenida.
A QUESTÃO DAS CARGAS E DESCARGAS Além da perda de estacionamentos, uma das grandes contestações por parte dos comerciais prende-se com a perda de lugar para os veículos de cargas e descargas que acaba por condicionar a dinâmica dos negócios. Mário Freitas, responsável, fundador e proprietário da Kingpin Books, a maior loja de banda desenhada de Portugal, explica que os veículos de cargas e descargas “perderam a possibilidade de parar em segunda fila”, como acontecia antes da obra, e lamenta a maneira como estas novas apostas acabam por condicionar a sua vida. “Durante o último ano e tal, saiu o tiro pela culatra à Câmara de Lisboa. Lembro-me que já se falava em tornar a baixa completamente intransitável, com medidas completamente surrealistas e deslocadas da realidade, como as entregas de mercadoria serem feitas apenas durante a madrugada, da meia noite às seis da manhã, e gostava de saber que transportadora é que faz entregas durante a madrugada”, interroga.
Esta diminuição do espaço na faixa de rodagem acaba ainda por dificultar a vida de pessoas em lares na Almirante Reis. “As pessoas que fazem hemodiálise, são obrigadas a atravessar a rua quase de arrasto pela ambulância, já que esta não pode parar em segunda fila”, acrescenta Luís Castro.
UM ATENTADO À SEGURANÇA? Castro acredita que tanto os comerciantes como os moradores estão a ser manipulados e sublinha que “o vereador Miguel Gaspar tem feito um dano enorme na avenida”. “Ainda ontem assistimos a um acidente com uma ambulância que circulava na ciclovia. Viu atletas que corriam na ciclovia e tentou desviar-se, e ao desviar-se bateu num carro que estava na faixa de rodagem. Está filmado e está documentado”, conta. O coordenador do Grupo de Vizinhos de Arroios defende que “as ambulâncias não podem andar na ciclovia e os ciclistas não podem andar fora da ciclovia”. Para ele, a segurança no trânsito tanto de peões como de ciclistas está condicionada: “Se eu tivesse um filho, jamais iria convidá-lo a andar na ciclovia, ali, no meio do tráfego (…) Não há segurança!”, garante.
Tal como ele, Ana Lúcia Batista, reporta situações de atropelamentos que têm acontecido em consequência desta falta de espaço na faixa de rodagem. “Tem havido imensos acidentes. Já tenho visto imensos senhores e senhoras a serem atropelados”. A moradora acredita que a culpa não é das autoridades, mas sim das pessoas com fraco sentido cívico. Contudo, denuncia a falta de pessoas que controlem estas situações. “Eu própria ia sendo atropelada no outro dia. Estava verde para mim e como vi que o ciclista ainda estava longe, tomei a liberdade de avançar. Mas quando vi que ele não tinha intenções de parar, foi por pouco que me desviei para não ser atropelada. Eu olho para os dois lados, vejo se não vêem carros, se não vêem bicicletas, mas se mesmo com o semáforo verde para mim, eu não tenho segurança, como é que ficam as coisas?”, interroga.“Já para não falar das confusões que existem entre os condutores dos veículos que quando está tudo entupido por causa do trânsito batem num, batem no outro e depois têm de esperar pela polícia e fica tudo parado”, testemunha o proprietário.
Ao que parece estas queixas contrariam o desejo, referido pelo vereador da mobilidade, de acalmar o tráfego nos bairros de Lisboa, “conforme aprovado por unanimidade em Câmara, cumprindo com o pacto dos Autarcas das quais Lisboa foi das primeiras subscritoras, com o acordo de Paris, e com os objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas, que no seu 11º objetivo ressalta “a importância de termos uma cidade com transportes seguros, onde os mais vulneráveis estão protegidos (idosos, crianças, peões, ciclistas)”. “A cidade para ser sustentável e inclusiva tem que ser equilibrada em termos de modos de transporte, e a cidade do final do século passado, não era. Isso levou-nos a que quase 60% das viagens na cidade de Lisboa fossem dependentes do carro, também por falta de alternativas”, comunica.
AS MEDIDAS DE CONTESTAÇÃO Os Vizinhos de Arroios assinaram recentemente a Carta Aberta pelo Direito ao Lugar onde existem várias medidas em torno da mobilidade pessoal e daquilo que esta significa e, segundo o coordenador do grupo, estas transformações são feitas de incrementos, de uma maneira suave. “Se os carros poluem muito então se calhar temos que ter outro tipo de carros e temos de ter mais postos de carregamentos elétricos para mobilizar e incentivar as pessoas”, propõe. Apesar de estar ciente das questões ideológicas do ponto de vista da sustentabilidade, o morador afirma que são poucas as pessoas que utilizam bicicletas na avenida e que com estas novas medidas “vamos dar cabo da economia do país”. “As pessoas fizeram investimentos brutais na compra de veículos, muitos deles elétricos, e não sei se você reparou, mas os postos elétricos dos carros estão vandalizados e por quem? Precisamente com os ambientalistas que são contra os carros. Há esta ideia de andarmos de bicicleta mas qual é o resultado? Pessoas que são atropeladas, acidentes com ambulâncias, negócios que fecham portas!”, exalta Luis Castro.
O Presidente da Associação dos Moradores de Arroios promete agir: “Nós vamos levar este caso a Tribunal e vamos exigir compensações para todos os moradores de Arroios. A menos que haja qualquer outra circunstância que determine de outra forma. Vamos pedir as devidas compensações que não serão pequenas, são vários milhões de euros”. Se a Câmara retira o estacionamento, tem de compensar as pessoas.