Juristas divididos

Juristas divididos


A leitura da decisão instrutória da Operação Marquês resultou em comentários dissonantes entre magistrados, que lembram que o Ministério Público vai recorrer para a Relação. 


A decisão de Ivo Rosa de não pronunciar o antigo primeiro-ministro por nenhum dos crimes de corrupção pelos quais vinha acusado na Operação Marquês gerou reações muito díspares entre magistrados e juristas, que, muito embora se escusem a comentar o caso concreto, lembram que há recurso para os tribunais superiores e reconhecem que a Justiça portuguesa tem de passar por uma profunda reforma.

Curiosamente, nesta semana, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, António Joaquim Piçarra, em declarações à agência Lusa, já tinha defendido a extinção do Tribunal Central de Instrução Criminal (ver pág. 33). E, há dias, a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, apresentou o plano do Governo de combate à corrupção.

A verdade é que a decisão de Ivo foi arrasadora para o Ministério Público e para o sistema de distribuição de processos (remeteu certidão para a PGR).

Para Adão Carvalho, secretário-geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), «esta decisão não é melhor nem pior do que aquela que o MP tomou em sede de acusação». Mas o magistrado alertou que o MP vai recorrer para o Tribunal da Relação de Lisboa, sendo que os procuradores pediram 120 dias para apresentar o recurso, o dobro do tempo que é normalmente admitido por lei. «Serão analisadas as provas e os elementos respetivos, e será proferida depois uma decisão definitiva», adianta, acrescentando que o MP_«fez o seu trabalho como devia, por magistrados que são competentes, e agora resta esperar aquilo que é o percurso normal da Justiça».

O magistrado procurou relativizar a questão central: «É compreensível que se faça uma leitura diferente do que a dos tribunais, porque de facto é um processo já com algum tempo» e, consequentemente, «já foi muito falado e discutido na praça pública, portanto é normal que a opinião pública possa, nesta fase, até não compreender que esta não é uma decisão definitiva».

 

A descredibilização da Justiça

Já Luís Menezes Leitão, bastonário da Ordem dos Advogados e professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, salvaguardando que não pretende «comentar a decisão em concreto», considera que o fator mais preocupante é o facto de que o MP «apresentou uma acusação com tamanha extensão e a mesma tenha sido rejeitada na sua esmagadora maioria pelo juiz de instrução», o que «significa que alguma coisa correu mal». «Estando em causa o escrutínio público da Justiça, acredito que seria muito importante se o MP prestasse explicações sobre aquilo que se passou», esclarece o docente, explicitando que «o juiz de instrução declarou que a acusação está mal feita, sem identificar os elementos específicos do tribunal e que está a ser feita sem prova adequada».

«Isto tem de ser justificado, porque uma acusação destas implica um grande investimento de dinheiros públicos e isso significa de facto que o escrutínio vai ser feito e tem de ser explicado o que se passou», partilha, adicionando que o poder político deve analisar o funcionamento da Justiça, pois «corre-se o risco de haver uma descredibilização da Justiça para os cidadãos».

 

‘Não é uma decisão definitiva’

Para o presidente cessante do SMMP, António Ventinhas, «a questão não está definitivamente encerrada e terá de ir para outra instância». Apesar de não querer pronunciar-se diretamente sobre a decisão em concreto, refere que «já têm havido alterações aos regimes de prescrição» que, neste megaprocesso, podem ser relacionadas com o crime de corrupção passiva imputado a José Sócrates (no caso Vale do Lobo ou os crimes imputados a Ricardo Salgado e Sócrates nos negócios da PT em Portugal e no Brasil) que prescreveram. «Quanto às prescrições, a possível mudança é sempre algo que se coloca, mas neste caso em concreto não me quero expressar, até porque só com o conhecimento do processo é que se pode apurar que um crime prescreveu», salienta, frisando que não se pronuncia porque «isso era estar a concluir que a decisão já estaria tomada».

 

‘Não pôr as pedras todas no cesto da repressão criminal’

Para António Cluny, procurador-geral adjunto, esta «decisão prova a dificuldade que há em tratar a corrupção apenas do ponto de vista judicial», defendendo que «são precisas medidas  importantes e vigorosas para combater a corrupção no plano da prevenção, isto é, no controlo da despesa e até da receita pública».

Por outro lado, o magistrado realça a urgência da «redefinição das cadeiras da Administração Pública que deem autonomia e garantias aos altos funcionários do Estado para poder emitir os seus pareceres técnicos, sejam eles jurídicos, económicos ou de engenharia», defendendo que «há todo um edifício de construção de medidas de prevenção» que podem passar pelo reforço do papel do Tribunal de Contas e das carreiras da Administração Pública.

«A luta contra a corrupção baseada quase exclusivamente num sistema jurídico-penal tem problemas como a dificuldade de prova e investigação patentes», afirmando que «só uma alteração estrutural» destas medidas «poderá evitar resultados que são penosos para o cidadão, para a comunidade e que nenhuma decisão judicial de natureza criminal consegue reparar».

Cluny recorda que «não devemos pôr as pedras todas no cesto da repressão criminal», pois, apesar da importância desta instância, nomeadamente, por meio do reforço das perícias ou do aperfeiçoamento da legislação, «tão ou mais importante do que isso é discutirmos como podemos prevenir situações que se arrastam durante anos sem que nada aconteça».

 «É preciso ter barragens de alerta e intervenções que evitem o desenvolvimento de processos corruptivos antes dos crimes se consumarem totalmente», remata, elucidando que «por muito que o sistema judicial possa fazer, fá-lo sempre quando o prejuízo está realizado e é muito difícil repará-lo».

Na ótica do procurador, «isto mostra que a própria partidarização dos funcionários da Administração Pública impede uma autonomia decisória» da mesma e, à sua vez, impõe-se «o reforço do Tribunal de Contas e das suas capacidades de avaliar não só a legalidade formal dos contratos mas a própria legalidade substancial combinada com a economicidade» destes.