Nos últimos meses, deu-se um eclipse editorial no nosso país. E esta actividade, hoje perfeitamente subjugada aos dispositivos do mercado, sucumbiu assim que as condições de circulação e promoção dos livros foram postas em causa. Sem a música de feira do fervilhar de acontecimentos culturais, os carrosséis ficaram desactivados. Uma vez que os editores não tinham como prosseguir a sua política de promessa, mandaram o quadro abaixo, limitando-se a acender velas e manter pequenas luzes de presença, um mínimo de visibilidade que nos deu uma perspectiva muito clara da claustrofobia das redes sociais. De súbito, todas as viagens nos deixavam perante a orla esfarrapada de um futuro pouco aliciante. E ainda que não tenha cessado a tagarelice dos escritores, nem a probabilidade de a normalidade ser retomada em breve conseguiu aguentar os ânimos. Nenhuma cerimónia parecia capaz de dissipar o ambiente de estupor que se tem vivido nas margens culturais. Sem o seu aspecto festivo, estas manifestações revelaram o pouco que, de facto, manifestam, pois perderam o sentido assim que os mecanismos e estratégias comerciais das editoras já não lhe ofereciam estímulos. Festivais, apresentações, sessões disto e daquilo, leituras, mesas-redondas, conferências ou colóquios, tudo isso ficou reduzido a um aparato mínimo, circunvagando a falta de sonho, nesse abate temporário da ilusão sobre as boas causas a que os escritores emprestam tanto do seu tempo. Assim, o que poderia ter sido uma trégua para se repensar a fatuidade das manifestações culturais, antecipou, na verdade, uma autópsia deste fenómeno, e ficou claro o quanto a vida literária se tornou obesa, como “fabrica a conformidade e o consenso, dissolvendo todas as asperezas da arte, toda a resistência da literatura”, como em tempos notou certo crítico cultural. A pressão exercida pela pandemia desmascarou assim essa anestesia de largo espectro, esta existência que se reduz ao regime da celebração e da apologia de uma realidade que há muito se sumiu. Assim, esta catástrofe dissipou as miragens, e veio mostrar-nos as imagens desligadas da aparência. Mas aqui, e perante a derrocada momentânea do empreendedorismo neoliberal ao qual os escritores hoje não são de todo alheios, vale a pena citar um breve conto de Tonino Guerra, que se chama “O prisioneiro”.
“Um jovem que esteve preso na Alemanha, dois anos após o fim da guerra, regressa a Bona para se regozijar com o sofrimento dos alemães. Da janela da pensão, pela manhã, olha satisfeito o deserto de escombros em que se tornou aquela cidade.
Mas ao fundo da rua, uma pequena banda aparece, tocando uma marcha militar com sons claros, nítidos, esféricos. De onde vinha e para onde se dirigia? No porte dos músicos, havia um desejo de recomeçar e já se adivinhava a eterna teimosia do povo alemão. E o jovem começou a soluçar.”
É neste ponto que estamos. Já se começam a ouvir os sons claros de uma marcha militar retomando o seu caminho. Assim, também por contágio a vida arranca de novo, mesmo que devagar. E muitas vezes nem é preciso que sacuda o torpor, pois este chega a revelar-se útil. Que se publiquem livros não implica que as bandas que se formam por esses lados façam as suas rondas por fora do esquecimento, exercitando o silêncio das recusas. Nada disso. E, no entanto, os livros são essas imagens que, se nos adentrarmos na sua trama, nos livram do mundo de aparências que nos cerca. De resto, como notou Alejandra Pizarnik, “um olhar a partir do esgoto/ pode ser uma visão do mundo”. E adiantou que “a rebelião consiste em olhar uma rosa/ até pulverizar os olhos”. Se nos esquecermos das leituras, daquilo que nos belisca o espírito, talvez então só nos reste apodrecer nos nossos corpos. Por mais que o meio editorial esteja perdido, desenha com pedras o seu trilho, e essas pedras lançadas por nós são como pássaros perdidos que desanuviam o horizonte com o seu grito único e irrepetível. Eis alguns exemplos de livros que merecem a nossa melhor atenção.
A Lua e as Fogueiras
De Cesare Pavese
Livros do Brasil
Escrito pouco tempo antes do suicídio de Pavese, A Lua e as Fogueiras fala-nos de uma Itália bastante particular onde o espectro da guerra continuará a pairar: os corpos que continuam a aparecer, como se nascessem da terra, a equivalência moral entre os fascistas e os partigiani, defendida por uma parte da população e patrocinada pela Igreja, a pobreza que continua a mesma – tão estável que parece nascer da própria paisagem. Depois de 20 anos emigrado nos Estados Unidos – onde fez fortuna -, a personagem principal volta para a aldeia que o viu crescer para encontrar tudo ou quase tudo igual: a mesma miséria, o mesmo género de pessoas, mudando apenas o nome, a mesma paisagem. Pavese, autor ligado ao neo-realismo, mostra-nos, neste romance que não chega a desposar totalmente os mecanismos do neo-realismo, que verdadeiramente cosmopolita são estes miseráveis que vai encontrando em Itália e nos Estados Unidos. (João Oliveira Duarte)
Trilogia da Cidade de K.
De Agota Kristof
Relógio d'Água
Juntando três textos diferentes – O Caderno Grande, A Prova, A Terceira Mentira -, Trilogia da Cidade de K., de Agota Kristof, situa-se na Segunda Guerra Mundial. Há um certo tom infantil, com a crueldade inerente a isso, que transforma os dois irmãos de “O Caderno Grande” em personagens particularmente capazes de se colocar no centro da devastação e construir desta uma imagem – sem cair em qualquer lamento humanista cheio de boas intenções. É uma paisagem cheia de morte, de fúria e crueldade: mais do que ter capacidade para compreender o que quer que seja, ao escritor pede-se aquele tom neutro, desprovido de subjectividade, que Sebald elogiava a um relatório médico sobre o estado dos cadáveres no ataque a Dresden. (João Oliveira Duarte)
Noites Azuis
De Joan Didion
Cultura Editora
Inexplicavelmente, este é apenas o segundo título de uma das mais admiráveis vozes femininas da contemporaneidade, uma dessas figuras de culto que marcaram o período de maior influência do jornalismo, quando os factos eram tão importantes que se confiava à literatura a sua interpretação. Didion sempre arrancou à sua vulnerabilidade as forças que precisava para dizer algo de tão honesto que a sua voz se impunha como se fora a consciência de uma época que estivesse a ajustar contas consigo mesma. Neste livro, toma balanço na sua infância e nos anos do matrimónio com o também escritor John Gregory Dunne, e sente profundamente a perda da filha, Quintana Roo, enquanto se debate com a doença e o envelhecimento.
Cães de Chuva
De Daniel Jonas
Assírio & Alvim
Infelizmente, a poesia nem ao menos uma mão nos oferece para nos coçar, neste momento em que as horas nos surgem sem nada senão um colchão sujo, cheio de percevejos. Olhamos à volta e nem mitologias galantes, nem rodeios mais sensíveis ou exaltantes, apenas mansidões e as coscuvilhices na vizinhança da alma, essa quimera exausta. Mas a poesia de Daniel Jonas puxa para o seu convívio lúcido uma tradição vastíssima, e, uma vez mais, propõe-nos o poema como essa resistência, “o fim depois do fim/ após a morte, antes da terra”. Atiça de novo o borralho e vemo-lo arrancar vida dele. “Sensatas cinzas, isso, repousai:/ depois de um grande fogo a grande calma./ Talvez pirilampos, farolins interpolados,/ restem, pontilhistas, nesta tela de treva,/ fogachos de um pintor ao negro./ Como o dia que renunciou à sua luz,/ a noite há-de render-se a nova aurora (…)”
Sonhador Definitivo e Perpétua Insónia
Editora Contracapa
Trata-se de uma ambiciosa e ampla antologia de poemas surrealistas escritos em língua francesa, boa parte deles de autores obscuros ou desconhecidos dos leitores portugueses. A selecção dos textos e a tradução é da poeta Regina Guimarães, e o seu companheiro de sempre, Saguenail, assina uma breve mas instrutiva nota de apresentação, que nos lembra como este movimento, que tem em André Breton o seu grande mentor, abraçou a tarefa de expor “o funcionamento real do pensamento”, nomeadamente por meio dos relatos de sonhos, das conversas sob hipnose e sobretudo da “escrita automática”. Não haverá entre as propostas editoriais do momento presente outro toque de clarim mais difícil de ser confundido com os som dos sinos ao domingo.
Uma Última Pergunta
Entrevistas com Mário Cesariny
Documenta
Cesariny era um desses seres adorados pelas musas, alguém que sempre teve algo a acrescentar. Surgia não de flor mas de astro na lapela, e havia nas suas observações um rasgo desarmante, uma airosa inteligência que logo se enraizava. Fosse por escrito fosse largando palavras aladas, nunca lhe faltou assunto, e um remoque abria asas, e, desde uma altura muito alta, deixava uma sombra imensa sobre a terra. Este livro é um contributo fabuloso para nos acercarmos melhor do seu pensamento. O de um poeta que esteve sempre muito menos interessado no regime da canonização literária, e mais nessas visões que, no silêncio total de que se revestiam, gritam incessantemente, obstinadamente, as suas descobertas, a sua força de destruição e reconstrução, intermináveis, do mundo.
Uma Longa Viagem com Vasco Pulido Valente
De João Céu e Silva
Contraponto
Ao longo de décadas na imprensa, Vasco Pulido Valente foi o intelectual que mais angustiadamente exprimiu a desolação diante de um país desprovido de um destino ou até de um sentido trágico, e fê-lo elegendo inimigos para se lhes opor radicalmente. Lamentava-se por esta sua propensão polemista o ter afastado tantas vezes daquela que considerava a sua mais nobre vocação: a de historiador do século XIX português. Este livro é não só um balanço da vida do autor, mas um resgate desses planos, um ensaio ao longo de 40 sessões, em que os fantasmas do passado por instantes largam a farpela dos esboços e entram em diálogo, numa análise dos acontecimentos mais marcantes da história e da política portuguesa dos últimos 200 anos.
Este Grande Não-Saber
De Denise Levertov
Flâneur
Andreia C. Faria e Bruno M. Silva assinam a tradução da primeira obra de uma das mais relevantes poetas norte-americanas do século XX, e é pelo fim que chegamos ao conhecimento desta voz cheia de dignidade e reverência pelo mundo, pela vida. Como nos dizem os tradutores na nota prefacial, escritos ao longo dos derradeiros meses de vida de Denise Levertov, os poemas detêm-se na sacralidade das práticas familiares, na memória revigorante da infância, na vulnerável e concreta, mas também mitológica materialidade do corpo humano, na imponência da natureza (a massa volúvel de montanhas e lagos que irrompe em vários poemas, a minúcia animista de árvores e flores), o lamento ecológico e a surpreendente presciência quanto aos efeitos de fragmentação e erosão da memória ocultos sob o impulso tecnológico, assim como a denúncia sem pejo de injustiças.