Hollywood arrisca tornar-se uma fábrica de doces sem açúcar, e num período tão conturbado quanto este, de divisões culturais estupendas, guerras e rixas, muitas delas promovidas pela estupidez e pela incompreensão, que mais se pode exigir de uma obra artística quando esta revela um verdadeiro ímpeto, capaz de levar até ao fim o seu delírio, mesmo que por apenas duas horas, um filme que nos faça pôr a vida em xeque, atirar com o bom senso às malvas, e ambicionar um verdadeiro ajuste de contas? Promising Young Woman é um filme insolente e rancoroso, mesmo se não aguenta o grau de ferocidade que as primeiras cenas prometem. Mas, pelo menos, tem uma premissa estrondosa, e abre margem para um tipo de cinema arriscado numa altura em que se espera da arte tudo menos que nos reúna à volta de um tabuleiro de um jogo verdadeiramente perigoso. Hoje, perante a maioria dos filmes que saem daquela fábrica, incapazes de sacudirem o pó das suas boas intenções, e tantas vezes resvalando na pregação moralista, aquilo que damos por nós a perguntar é: Quem ofendem, de facto, esses filmes? Aqueles que tendo a obrigação de ripostar, acabam por servir o regime mais tacanho da manipulação, mesmo quando os seus criadores têm a consciência de como as reações que nos querem obrigar a ter são autocomplacentes, redutoras e pré-fabricadas. Assim, cada vez mais nos sentimos agastados por uma cultura que depõe as suas armas em nome desse progressivismo de contrafação, numa tentativa de nos utilizar e transformar em imbecis emocionais e estéticos, coisa que se torna ainda mais nítida quando damos uns pelos outros a trautear as banalidades piegas e moralistas desses filmes e séries que hoje nos cercam. “As coisas que nós fazemos amanham-se sozinhas”, disse Artaud, e o cinema que quer lidar com questões realmente complexas e perturbadores teria de começar por se livrar de uma ordem narrativa que, muito simplesmente, “paralisa a fantasmagoria em movimento que a nossa existência é", como escreveu Joan Didion. Há quem pense que aqueles que enchem hoje as salas de cinema, sobretudo nos centros comerciais, esses bandos de adolescentes que acorrem ali munidos de baldes de pipocas não merecem nada senão essa atitude de desdém que afirma: “Porcaria é o que eles merecem ver.” Mas um filme como Promising Young Woman prova que, mesmo uma obra cheia de defeitos, com um arco narrativo que não consegue desembaraçar-se da tentação de, no fim, resolver o enredo, atando de forma demasiado conveniente uma série de pontas soltas, mesmo uma obra assim consegue ser imensamente sugestiva, e lançar-nos numa reta maníaca mesmo quando o argumento, por prudência, prefere desenhar uma curva, recolher as garras, não levar às últimas consequências essa fagulha que soltou prometendo-nos algo de teor mais incendiário.
O filme foi descrito pelo The New York Times como um rebuçado que demora a desfazer-se e que tem um coração azedo, com um argumento que transforma a sociopatia num estilo e o trauma numa piada. Esta descrição não é, no entanto, das mais justas com a estreia de Emerald Fennell na realização. A também actriz, guionista e produtora que esteve à frente da segunda temporada de Killing Eve, arrisca bastante num filme que, nos melhores como nos piores momentos, parece andar aos trambolhões, sem se definir num género, com a farda meio encardida, desfraldada, entre o registo da comédia negra e o thriller, embalando às vezes de forma descarada num tom de preleção feminista, mas é esse desalinho e desordem que nos mostra a luta interior da personagem e do próprio filme. Chama-se Cassandra a protagonista encarnada por Carey Mulligan, numa interpretação que lhe valeu a nomeação ao Óscar, e esta jovem mulher que teria um futuro promissor a aguardá-la encarna por sua vez o desastre que o trauma provoca, a forma como alastra, contagia, regista de forma violenta aspectos antes anódinos ou inofensivos. Aos 30 anos, Cassie deixou a meio um curso de medicina depois da melhor amiga, Nina, ter sido violada à frente dos colegas, abandonando o curso e acabando por se suicidar. A viver ainda em casa dos pais, trabalha durante a semana num desses cafés dos limbos na periferia da juventude, reservando os fins-de-semana para ir à caça. E as suas presas são esses homens que traçam um paralelo entre o estado de inebriamento e a fragilidade de uma mulher e o estar a pedi-las, como se uma falha qualquer na rendição dos guardas entre turnos fosse um convite aberto ao primeiro tipo a apresentar-se ao serviço. A cena de abertura tem lugar numa discoteca, com a câmara a abrir a lata dessa habitual visão panorâmica de uma noite de sexta-feira, quando os rapazes deixam os seus empregos e vagueiam pelas margens da noite suplicando alguma oportunidade de romper com a rotina. Apanhamos um grupo em que um dos rapazes, interpretado por Adam Brody (um tipo que associamos aos gajos sensíveis que povoam o mundo das comédias românticas) parece não alinhar nas bacoradas sexistas que os amigos se lançam, resmungando por causa de uma colega de trabalho que se foi queixar de tratamento injusto… Isto até um deles dar com uma miúda que parece ter perdido a comunicação com a torre, estando com dificuldades para aterrar na pista, mostrando-se inebriada, sem ter sequer uma amiga para velar por ela. Esparramada num banco, de olhar perdido, nem parece dar-se conta de que a saia, que não era assim tão curta, foi-se arregaçando e já chegou ao nível das coxas. E então os rapazes comentam entre si o fácil que seria ir lá e tratar do assunto. É o personagem de Brody que parece revelar-se desgostado com o tom da conversa e que, num ensaio de cavalheirismo, se oferece para fazer a coisa mais decente e levá-la a casa em segurança. Mas é já quando estão os dois no táxi que se lembra que talvez pudessem passar antes por sua casa para beberem um copo. Ela parece murmurar qualquer coisa ao nível do consentimento. E isso parece ser o bastante para puxar o gatilho e encadear as acções que se seguem. No momento seguinte estão no apartamento dele, e ela tem uma porção generosa de uma dessas bebidas coloridas e de ar inocente que, se descem suavemente, não deixam de apagar as luzes todas. No momento seguinte, já ele a tem na cama, e já se sente à vontade para lhe despir a saia e ignorar os vagos protestos que ela resmunga num estado de evidente estupor. E é neste momento, quando os dedos dele já avançam sobre ela, que Cassie revela a sua sobriedade, passando de dócil presa a um olhar inquisitivo de uma frieza arrepiante. O tipo logo emenda a mão, e faz a fita do bom rapaz, que julgava ter encontrado ali uma conexão. É quando ela começa a inquiri-lo, a fazer-lhe umas perguntas básicas, expondo-o ao ridículo por não se ter interessado minimamente em saber quem estava a despir. A coisa poderia ficar-se por uma sardónica admoestação a violadores em potência, mas há um brilho malévolo no olhar desta mulher, e sabemos que alguma forma de punição será exercida sobre o incauto rapaz. A cena fica por aí, e a seguinte tem o amanhecer a rasgar ao fundo da rua, enquanto ela segura os sapatos de salto numa das mãos, indo descalça e a dar dentadas num cachorro enquanto a música “It’s Raining Man” lhe serve de rasto, num apontamento que vai da perversidade à galhofa. E sobressaindo entre restos de maquilhagem o rosto dela parece estar pintalgado de sangue. Depois de chegar a casa e ao quarto, vemo-la registar o encontro num caderno com uma série de traços a negro e outros a vermelho. São menos estes, e o que implicitamente nos é sugerido é que se trata das vezes em que foi preciso ir além de um simples responso.
Nas reações ao filme, que chegou às salas de cinema nos EUA pela altura do Natal e aos serviços de streaming em meados de janeiro, a crítica tem-se mostrado bastante dividida, e se alguns se apressaram a saudar Emerald Fennell por ter atacado de frente essa malha de eufemismos que cercam a cultura dos abusos sexuais, as cinquenta sombras à volta da questão do consentimento, abrindo uma frente mais destemida e ríspida nas acusações que faz na senda do movimento #MeToo, outros acusaram o filme de ser, na verdade, um passo em falso, de vir simplificar as coisas, não dando expressão propriamente ao sofrimento das vítimas de abusos sexuais, preferindo morder o pano, lançar-se desabridamente numa fantasia de vingança. Jeannette Castoulis, no Times, defende que para que Promising Young Woman pudesse realmente ter a pretensão de ajustar contas e estar à altura do desafio teria de ter pelo menos uma cena em que um homem reagisse de forma credível à armadilha montada por Cassandra: “Nem todos os potenciais abusadores desatam a pedir desculpas quando são apanhados em flagrante delito.” Castoulis parece sugerir que, no mundo real, se uma mulher tivesse o atrevimento de levar até ao fim esta inversão predatorial sobre os homens, rapidamente a coisa ficaria bem mais assustadora, bem mais negra. E se é verdade que o filme tem aspetos audaciosos e dá um passo numa direção bastante perigosa, é também verdade que lhe parece faltar depois nervo, a capacidade de se lançar de cabeça no abismo e experimentar a forma como este nos mói o juízo e dilui as entranhas, à medida que o projeto de uma pândega, de uma vingança humorada se desfaz, e as trevas tomam conta de tudo. Ainda assim, este filme tem o mérito de lançar uma campanha ofensiva no território das comédias românticas, e é nesse ponto que a sua acidez tem mais efeito, acusando o próprio regime de miragens para o qual contribui a cultura das celebridades, essa radiante postura iconográfica que pretende agora passar ao ataque, esquecendo que é a própria ilusão em que participam que se tornou um absurdo, uma espécie de refúgio paralisante, e que, tendo perdido contacto com o mundo, estas figuras agem em vão. Assim, apesar das afirmações em contrário, de todo o bulício que se gerou, estas lutas são apenas dramas que não penetram as camadas mais fundas da sociedade, ficam à superfície, como ficções, não sendo consequência de novas perspetivas, mas de ideias muito antigas. Neste sentido, um dos golpes de génio deste filme está na escolha do elenco, na decisão de trazer uma série de tipos desses que associamos ao sedutor universo das fitas levezinhas de comédia para que, como vincou a escritora Arielle Brousse, “possas sentir o efeito de décadas de socialização que te levaram a pensar que é impossível aquele tipo ser assim tão sacana, tão ameaçador. Não é possível, tem de ter havido aqui algum tipo de confusão.”