A nova vida dos My Bloody Valentine

A nova vida dos My Bloody Valentine


Os My Bloody Valentine vão disponibilizar online o seu catálogo musical, uma boa desculpa para revisitar a história da banda irlandesa.


Foram considerados uma das bandas mais barulhentas do mundo (até passaram a distribuir gratuitamente tampões para os ouvidos nos seus concertos) e quase levaram uma editora à falência para gravar a sua obra-prima que inspirou gerações futuras. O catálogo da banda irlandesa My Bloody Valentine, depois de assinar pela Domino Records, está finalmente disponível online na integra e os seus discos, Isn’t Anything (1988), Loveless (1991), mbv (2013) e eps 1988-1991 And Rare Tracks (2012) vão ser alvo de reedições para venda em formato físico.

“A Domino tem imenso orgulho em anunciar que assinámos os My Bloody Valentine e que o catálogo seminal da banda vai ser disponibilizado digitalmente pela primeira vez”, pode ler-se no comunicado enviado pela editora, que acrescenta que as edições físicas estarão disponíveis para venda no dia 21 de maio.

Estes discos que ajudaram a definir o género musical “shoegaze”, termo originalmente utilizado depreciativamente, uma vez que os músicos passavam a maior parte do tempo a olhar para os pedais de guitarra (junto aos pés) devido à grande e complexa mistura de efeitos, vão ser objeto de uma remasterização completa do analógico e vão receber um tratamento de alta resolução para os LPs, algo que não poderia deixar de acontecer sob a supervisão do perfecionista Kevin Shields, vocalista, guitarrista e “cérebro” do conjunto. 

A banda que mudou tudo A improvável história dos My Bloody Valentine começou de uma forma igualmente improvável: num torneio de karaté em Dublin.

Shields conheceu Colm Ó Cíosóig, que no futuro viria a ser o baterista do conjunto, e tornaram-se instantaneamente amigos.

Juntos formaram diversas bandas de punk, mas nada de muito definitivo, até que, em 1983, com David Conway, acabariam por criar a primeira formação dos My Bloody Valentine, nome sugerido por Shields e que este juranão ter nada a ver com o filme de terror canadiano com o mesmo título lançado em 1981.

Depois de diversos pequenos lançamentos, como Geek! (1985), onde a banda ainda estava à procura do seu som, apoiando-se demasiado em influências como os The Cure, The Cramps ou os Jesus and the Mary Chain, a banda mudou-se para Londres e foi aqui que o seu destino mudou.

Os My Bloody Valentine abriram, em janeiro de 1988, um concerto da banda Biff Bang Pow!, de Alan McGee, criador da lendária editora Creation Records, responsável pela descoberta de bandas como Oasis ou Primal Scream. McGee ficou tão impressionado com os músicos que acabou por convidá-los para gravar alguns temas.

Destas sessões resultou o EP You Made Me Realize, que impressionou, igualmente, críticos e fãs, pela selvajaria e inovação das suas músicas, nomeadamente da faixa que partilha título com o disco, cujo solo, mais conhecido como “a secção do holocausto”, ao vivo, costuma estender-se em sessões de 20 minutos de feedback e distorções ensurdecedoras (segundo o blog Punk News, esta parte do concerto costuma alcançar os 130 decibéis, próximo do barulho de um avião a descolar).

O primeiro disco de longa duração do grupo, Isn’t Anything, foi bastante elogiado e influente pela forma inovadora de utilizar as guitarras, fora do padrão rock, blues, jazz, punk ou qualquer estilo pré-definido.

“Uma das minhas maiores influências foi o hip-hop, e como soava moderno. Os arranjos, os sons, as melodias nada tradicionais, os samplers… tudo isso me levou à procura de uma nova forma de tocar guitarra”, disse Shields durante uma entrevista ao jornal brasileiro O Globo, revelando que a resposta estava numa parte específica da guitarra.

“Quando descobri a alavanca de tremolo da guitarra, percebi que podia fazer com a guitarra o que os samplers faziam. Eu não queria que ela soasse como uma guitarra”.

Este novo som viria a influenciar todo um conjunto de artistas, desde os The Cure, num momento em que os “mestre” voltaram a ser “aprendizes”, Slowdive, Spiritualized, Radiohead, Sigur Rós e até os Coldplay – basta pesquisar a faixa ‘Yes’ do disco Viva la Vida.

No entanto, se Isn’t Anything tinha impressionado tudo e todos com o seu som futurista, o lançamento de Loveless ainda ia superar estas expetativas. 

A quase falência, a loucura e a aclamação global O disco lançado em 1991 é considerado um dos mais influentes dos últimos 40 anos. A Rolling Stone colocou-o em 73º na lista dos 500 melhores álbuns de sempre, já a NME posicionou-os em 18º e ainda foi incluído no livro 1001 discos para ouvir antes de morrer.

Apesar de todas as distinções e elogios – o pioneiro musical Brian Eno considerou que Loveless lançou um “novo padrão para toda a música pop” –, o caminho para a criação do disco foi incrivelmente perturbado. 

O disco demorou dois anos e meio a gravar, algo inesperado para a banda que até então era bastante prolífica em termos de lançamentos. Segundo Shields, o tempo total gasto no estúdio foi de cerca de quatro meses.

As interrupções deveram-se a mudanças de estúdios, mais especificamente vinte, por nenhum agradar ao guitarrista, mas também por problemas de saúde. A meio das gravações, Shields e a vocalista Bilinda Butcher começaram a sofrer de tinnitus, que os amigos do grupo culparam pelo volume exageradamente alto dos concertos, e demoraram semanas a recuperar.

Esta demora na entrega do disco saiu cara à Creation Records, que alegadamente gastou meio milhão de euros para o gravar, quase levando a editora independente à falência. Reza a lenda que devido ao stress de todo este processo o cabelo de Dick Green, co-fundador da editora, ficou grisalho do dia para a noite. 

Apesar do successo e da influência de Loveless na música contemporânea, os My Bloody Valentine passaram por um período conturbado após o lançamento do disco. Alan McGee expulsou-os da Creation Records, afirmando que não conseguiria voltar a trabalhar com eles, e, em 1997, a banda anunciou o seu fim. 

Kevin Shields sentia-se incapaz de criar algo que chegasse aos calcanhares de Loveless, algo que o levou a isolar-se em sua casa, rodeado por chinchilas, revelou McGee numa entrevista ao Guardian em 2013, e o músico revelou que esta ânsia de se superar o levou a sentir-se “louco”.

O músico continuou afastado do mundo, apenas a trabalhar como produtor em álbuns de bandas como Dinosaur Jr., Yo La Tengo ou Mogwai e a servir como membro da banda de tour dos Primal Scream. Só viria a mudar de postura em 2007, quando anunciou a reunião dos My Bloody Valentine para diversas tours mundiais, com passagens por Portugal, em 2009 no Festival Rock One, em Portimão, onde foram recebidos com lenços brancos por fãs dos Offspring, e no (mais apropriado) Primavera Sound no Porto, em 2013.

Esta reunião culminou com o lançamento de mbv, o tão aguardado terceiro disco do conjunto, que mistura material gravado imediatamente após o lançamento de Loveless e de novas sessões realizadas depois do regresso da banda ao estúdio, e que foi aclamado por publicações como a Pitchfork, Consequence of Sound ou Stereogum, que o elegeram um dos melhores álbuns de 2013.

Apesar desta nova vida do grupo, muitos fãs ficaram desiludidos porque pensavam que finalmente iam ser lançados os tão prometidos novos discos de My Bloody Valentine. Mas esta realidade pode não estar assim tão longe. 

Numa entrevista ao New York Times, publicada na passada quarta-feira, Kevin Shields revelou que a banda tem dois álbuns preparados para lançar nos próximos tempos, descrevendo um dos discos como mais “caloroso e melódico” e o outro como mais experimental. Segundo Bilinda Butcher, estarão gravados antes do final deste ano.