Stress Pós-Traumático: Os que a Guerra não matou


Perceber que se precisa de ajuda é de uma capacidade notável e mover esforços no sentido de recorrer a ela, de uma coragem e resiliência imensuráveis.


O balão da festa de anos rebentou e levou instintivamente a mão à cintura. A espingarda não estava ali e há muito que ele próprio também não. Trazia um gigante por dentro, onde moravam todos aqueles que viu cair às mãos da guerra.

Às vezes, agigantava-se de tal forma que não sabia dizer quem é que vivia em quem. Já não dormia com uma arma debaixo da almofada (raios partam, já não sabia o que era dormir sem comprimidos há muitos anos), nem era chamado de madrugada para acudir algum camarada a quem tinha saltado um dedo, uma orelha, ou pior.

Já não andava no mato a apanhar restos mortais de um homem com quem tinha partilhado a água do cantil horas antes. Mas e a ele que ficou? Que calhou ficar! Quem é que lhe tira da cabeça as cenas que viu e viveu?
Tivera sorte, repetia pra si mesmo nos momentos em que lhe faltava o ar, mas na maior parte dos dias, não sabia se ter ficado lá também, não teria sido uma sorte melhor que esta.

A Perturbação Pós-Stress Traumático de Guerra é um conceito que surgiu no seguimento da Guerra do Vietname (1959-1975) e da Guerra Colonial (1961-1974), quando o Vietnam Veterans Working Group propôs o diagnóstico enquanto fenómenos que afecta não só os veteranos de Vietname, mas todos os que estiveram sujeitos a situações exteriores a uma experiência de vida humana dita normal.

É uma bomba com efeito retardador que pode detonar meses ou mesmo anos depois do evento que a originou, explica Afonso de Albuquerque, médico miliciano em Moçambique – entre 1961 e 1694 – psiquiatra pioneiro da primeira consulta de tratamento do stress pós-traumático de guerra.

Segundo o especialista, em 2003, cerca de 140 mil ex-combatentes sofriam do trauma que não tem cura.

São muitos os factores por detrás desta perturbação: a morte de um camarada, contexto de combate, assassinatos, torturas, a destruição de aldeias e com elas, a obrigação de matar também mulheres e crianças, sede, fome, ferimentos e isolamento.

Hoje, os problemas mentais causados pelo stress de guerra são objecto de um cuidado e atenção que não mereceram durante anos, dado que os militares destacados recebem acompanhamento antes, durante o aprontamento e no regresso das missões. Até então, meados de 1994, apenas os deficientes físicos tinham direito a tratamento e apoio estatais.

O impacto desta perturbação pode e deve ser controlado através de apoio psicológico que é absolutamente fundamental e não tem necessariamente que passar apenas (ou de todo) por medicação.

Perceber que se precisa de ajuda é de uma capacidade notável e mover esforços no sentido de recorrer a ela, de uma coragem e resiliência imensuráveis.

A APOIAR (Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra), a ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas), a APVG (Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra), a ANCU (Associação Nacional dos Combatentes do Ultramar), e a ACUP (Associação dos Combatentes do Ultramar Português) são as associações nacionais de apoio aos ex-combatentes e respectivas famílias, que também sofrem com os traumas da guerra que os antigos soldados trazem para dentro de portas.

No final de 2019, no conjunto destas associações, contabilizavam-se cerca de 500 pessoas a receber apoio especializado, entre antigos militares e familiares.

Tal como acontece com todos os temas que, por razões várias, tenham sido até hoje, pouco explanados – comparativamente a outros – é importante que exista cada vez mais informação e respectiva divulgação acerca do stress pós-traumático de guerra, para que não só os próprios ex-combatentes como os familiares e amigos possam estar atentos aos sinais e consigam ajudar estes soldados que a guerra não matou lá atrás de uma assentada, mas teima em não deixar viver.

 O som das metralhadoras, das espingardas, dos morteiros, dos bombardeamentos não desaparecem e podem, a qualquer momento, tornar-se tão reais quanto o foram, em contexto bélico. O cheiro da pólvora também, basta que haja o cheiro a churrasco no ar.

Aquilo que é, para alguém que não sofra de PSPT, um estímulo insignificante, pode motivar uma resposta por parte de um indivíduo que tenha stress pós-traumático de guerra.

Esta perturbação condiciona a qualidade de vida de centenas, milhares de ex-militares que, muito embora possam não ter uma deficiência no corpo, se sentem incapacitados na mente. Os sintomas passam por dificuldade em dormir, pesadelos, ansiedade extrema, um estado de alerta constante, memórias perturbadoras recorrentes, angústia, ataques de pânico, evitamento de locais, pessoas e contextos que façam lembrar a situação vivida ou partilhem semelhanças com a altura em que o trauma teve origem.

É também muito comum que antigos soldados carreguem uma culpa, que não lhes pertence e precisa ser desconstruída, por terem sobrevivido, enquanto outros camaradas lá ficaram; culpa por terem vindo embora sem saber do paradeiro de homens que lutaram ao seu lado e não sabem se estão vivos ou mortos; revolta por não terem um corpo para dar a chorar às famílias. Em última análise, revolta porque sim e por viverem, muitos, em estado de permanente irritabilidade que depois se manifesta em contexto familiar, gerando mal-estar e em alguns casos, levando inclusive ao divórcio ou ao suicídio.

Uma das iniciativas da APOIAR passa mesmo por homenagear as mulheres de ex-militares e reconhecerem o PPST Secundário ou Perturbação Secundária de Stress Traumático (STSD) com a pretensão de que estas mulheres sejam incluídas na legislação. Actualmente e após várias reivindicações ao longo dos anos, o Ministério da Defesa já autoriza e financia o acompanhamento clínico das mulheres e filhos dos ex-combatentes da APOIAR e restantes associações abrangidas pelo protocolo da Rede Nacional de Apoio.

Segundo a Dra. Susana Oliveira, Psicóloga Clínica da APOIAR, quem priva com antigos militares que sofram de PSPT deve estar disposto a ouvir quando a pessoa quiser partilhar algo sobre o que sucedeu ou as emoções que isso lhe provoca; não lhe dizer que esqueça e ponha para trás das costas, porque além de ser humanamente impossível, só vai contribuir para que se sinta incompreendido e recorra cada vez mais ao isolamento.

É também importante dar espaço à pessoa para que regresse de forma gradual ao convívio. A dificuldade de retirar prazer da convivência como antigamente (muitos nem se acham sequer dignos disso por estarem vivos, enquanto outros morreram), os ambientes com barulho, até mesmo a junção de mais pessoas e o facto de estar sujeito a muitos estímulos num ambiente que não pode controlar, são tudo factores que o ex-combatente evita, pelo que é frustrante e difícil este processo de reabilitação e o apoio da família e amigos é crucial.

Sobretudo, não catalogar de loucura comportamentos cujas causas não conhecemos por dentro. Os veteranos não estão loucos; eles são os sobreviventes que a Guerra não matou e que trazem consigo uma batalha para a vida.

 

 

 

 

 


Stress Pós-Traumático: Os que a Guerra não matou


Perceber que se precisa de ajuda é de uma capacidade notável e mover esforços no sentido de recorrer a ela, de uma coragem e resiliência imensuráveis.


O balão da festa de anos rebentou e levou instintivamente a mão à cintura. A espingarda não estava ali e há muito que ele próprio também não. Trazia um gigante por dentro, onde moravam todos aqueles que viu cair às mãos da guerra.

Às vezes, agigantava-se de tal forma que não sabia dizer quem é que vivia em quem. Já não dormia com uma arma debaixo da almofada (raios partam, já não sabia o que era dormir sem comprimidos há muitos anos), nem era chamado de madrugada para acudir algum camarada a quem tinha saltado um dedo, uma orelha, ou pior.

Já não andava no mato a apanhar restos mortais de um homem com quem tinha partilhado a água do cantil horas antes. Mas e a ele que ficou? Que calhou ficar! Quem é que lhe tira da cabeça as cenas que viu e viveu?
Tivera sorte, repetia pra si mesmo nos momentos em que lhe faltava o ar, mas na maior parte dos dias, não sabia se ter ficado lá também, não teria sido uma sorte melhor que esta.

A Perturbação Pós-Stress Traumático de Guerra é um conceito que surgiu no seguimento da Guerra do Vietname (1959-1975) e da Guerra Colonial (1961-1974), quando o Vietnam Veterans Working Group propôs o diagnóstico enquanto fenómenos que afecta não só os veteranos de Vietname, mas todos os que estiveram sujeitos a situações exteriores a uma experiência de vida humana dita normal.

É uma bomba com efeito retardador que pode detonar meses ou mesmo anos depois do evento que a originou, explica Afonso de Albuquerque, médico miliciano em Moçambique – entre 1961 e 1694 – psiquiatra pioneiro da primeira consulta de tratamento do stress pós-traumático de guerra.

Segundo o especialista, em 2003, cerca de 140 mil ex-combatentes sofriam do trauma que não tem cura.

São muitos os factores por detrás desta perturbação: a morte de um camarada, contexto de combate, assassinatos, torturas, a destruição de aldeias e com elas, a obrigação de matar também mulheres e crianças, sede, fome, ferimentos e isolamento.

Hoje, os problemas mentais causados pelo stress de guerra são objecto de um cuidado e atenção que não mereceram durante anos, dado que os militares destacados recebem acompanhamento antes, durante o aprontamento e no regresso das missões. Até então, meados de 1994, apenas os deficientes físicos tinham direito a tratamento e apoio estatais.

O impacto desta perturbação pode e deve ser controlado através de apoio psicológico que é absolutamente fundamental e não tem necessariamente que passar apenas (ou de todo) por medicação.

Perceber que se precisa de ajuda é de uma capacidade notável e mover esforços no sentido de recorrer a ela, de uma coragem e resiliência imensuráveis.

A APOIAR (Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítimas do Stress de Guerra), a ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas), a APVG (Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra), a ANCU (Associação Nacional dos Combatentes do Ultramar), e a ACUP (Associação dos Combatentes do Ultramar Português) são as associações nacionais de apoio aos ex-combatentes e respectivas famílias, que também sofrem com os traumas da guerra que os antigos soldados trazem para dentro de portas.

No final de 2019, no conjunto destas associações, contabilizavam-se cerca de 500 pessoas a receber apoio especializado, entre antigos militares e familiares.

Tal como acontece com todos os temas que, por razões várias, tenham sido até hoje, pouco explanados – comparativamente a outros – é importante que exista cada vez mais informação e respectiva divulgação acerca do stress pós-traumático de guerra, para que não só os próprios ex-combatentes como os familiares e amigos possam estar atentos aos sinais e consigam ajudar estes soldados que a guerra não matou lá atrás de uma assentada, mas teima em não deixar viver.

 O som das metralhadoras, das espingardas, dos morteiros, dos bombardeamentos não desaparecem e podem, a qualquer momento, tornar-se tão reais quanto o foram, em contexto bélico. O cheiro da pólvora também, basta que haja o cheiro a churrasco no ar.

Aquilo que é, para alguém que não sofra de PSPT, um estímulo insignificante, pode motivar uma resposta por parte de um indivíduo que tenha stress pós-traumático de guerra.

Esta perturbação condiciona a qualidade de vida de centenas, milhares de ex-militares que, muito embora possam não ter uma deficiência no corpo, se sentem incapacitados na mente. Os sintomas passam por dificuldade em dormir, pesadelos, ansiedade extrema, um estado de alerta constante, memórias perturbadoras recorrentes, angústia, ataques de pânico, evitamento de locais, pessoas e contextos que façam lembrar a situação vivida ou partilhem semelhanças com a altura em que o trauma teve origem.

É também muito comum que antigos soldados carreguem uma culpa, que não lhes pertence e precisa ser desconstruída, por terem sobrevivido, enquanto outros camaradas lá ficaram; culpa por terem vindo embora sem saber do paradeiro de homens que lutaram ao seu lado e não sabem se estão vivos ou mortos; revolta por não terem um corpo para dar a chorar às famílias. Em última análise, revolta porque sim e por viverem, muitos, em estado de permanente irritabilidade que depois se manifesta em contexto familiar, gerando mal-estar e em alguns casos, levando inclusive ao divórcio ou ao suicídio.

Uma das iniciativas da APOIAR passa mesmo por homenagear as mulheres de ex-militares e reconhecerem o PPST Secundário ou Perturbação Secundária de Stress Traumático (STSD) com a pretensão de que estas mulheres sejam incluídas na legislação. Actualmente e após várias reivindicações ao longo dos anos, o Ministério da Defesa já autoriza e financia o acompanhamento clínico das mulheres e filhos dos ex-combatentes da APOIAR e restantes associações abrangidas pelo protocolo da Rede Nacional de Apoio.

Segundo a Dra. Susana Oliveira, Psicóloga Clínica da APOIAR, quem priva com antigos militares que sofram de PSPT deve estar disposto a ouvir quando a pessoa quiser partilhar algo sobre o que sucedeu ou as emoções que isso lhe provoca; não lhe dizer que esqueça e ponha para trás das costas, porque além de ser humanamente impossível, só vai contribuir para que se sinta incompreendido e recorra cada vez mais ao isolamento.

É também importante dar espaço à pessoa para que regresse de forma gradual ao convívio. A dificuldade de retirar prazer da convivência como antigamente (muitos nem se acham sequer dignos disso por estarem vivos, enquanto outros morreram), os ambientes com barulho, até mesmo a junção de mais pessoas e o facto de estar sujeito a muitos estímulos num ambiente que não pode controlar, são tudo factores que o ex-combatente evita, pelo que é frustrante e difícil este processo de reabilitação e o apoio da família e amigos é crucial.

Sobretudo, não catalogar de loucura comportamentos cujas causas não conhecemos por dentro. Os veteranos não estão loucos; eles são os sobreviventes que a Guerra não matou e que trazem consigo uma batalha para a vida.