O vício das séries. As outras vidas que vivemos

O vício das séries. As outras vidas que vivemos


Há quem as veja como uma forma de colmatar a solidão, uma maneira de sentir não vivendo ou mesmo um vício. As plataformas de streaming conquistam cada vez mais aficionados. Mas quanto tempo demoraríamos a assistir às “melhores séries de todos os tempos”?


Investimento ou perda de tempo? Seja qual for o ponto de vista, as séries exigem disponibilidade. E de quanto tempo disponível precisaríamos para ver do princípio ao fim aquelas que são consideradas as melhores séries de todos os tempos? A equipa de analistas da Picodi.com escolheu as produções com as melhores classificações e maior número de espectadores do IMDb e fez as contas.

O primeiro lugar na classificação de produções animadas vai para Os Simpsons. Uma das mais conhecidas e com maior longevidade, a série dos bonecos amarelos tem quase 700 episódios. Assistir a todas as temporadas criadas por Matt Groening desde o ano de 1989 requereria o total de 322 horas (mais de 13 dias) de visualização sem interrupções. O segundo lugar da lista vai para produção Sobrenatural, que contabiliza o total de 246 horas distribuídas por 15 temporadas. Mais abaixo vemos nomes como The Walking Dead, em quarto lugar, com 153 episódios, que correspondem a 116 horas; A Teoria do Big Bang, com 280 episódios, quase 95 horas; Uma Família Muito Moderna, com 235 episódios e quase 89 horas, e Friends, com 250 episódios, 88 horas.

Mas manter-se a par da cultura pop não é sinónimo de maratonas de dezenas de horas em frente ao ecrã. Entre as séries mais curtas podemos encontrar Chernobyl, ainda assim com mais de cinco horas de visualização sem interrupções e Gambito de Dama, com mais de seis horas.

“Se alguém decidisse fazer uma maratona completa e ver todas as melhores séries de todos os tempos, teria que passar 2.806 horas em frente ao ecrã”, contabilizam os analistas da Picodi.com. “Isto é equivalente a 175 dias se tivermos em conta um intervalo de 8 horas de sono”, lê-se no relatório.

 

Uma prioridade

Para a maior parte das pessoas, esta pode parecer uma missão quase impossível, mas para Ricardo Anapaz, de 27 anos, barman e aspirante a cozinheiro, não é algo assim tão inconcebível. “Viciado, completamente viciado em séries”, define-se Ricardo. Num dia normal, depois do trabalho e das tarefas domésticas, liga a Netflix ou a Disney Plus e acaba por passar cinco a seis horas em frente ao ecrã. “Quando estou de folga ou de férias os números sobem um pouco mais, e passo 10 a 12 horinhas agarrado a séries”, admite o barman.

 

Uma companhia

Enquanto Ricardo as vê como uma prioridade na hora de relaxar, Carolina Soares, de 23 anos, estudante na área da Criação de Conteúdos Digitais, conta que as séries foram durante os anos de faculdade a sua maior companhia: “A minha ida para Lisboa fez com que eu tivesse de arranjar uma forma de me entreter, já que não tinha a minha família por perto e não podia estar sempre a combinar coisas com os meus amigos”, declara. Nos dias em que não tinha aulas de manhã aproveitava para assistir a séries, quando não tinha aulas o mesmo… Carolina admite que chegou muitas vezes a adiar os estudos devido à ânsia de petiscar mais um episódio: “Muitas vezes cheguei a adiar os estudos para ver mais um episódio e, mal entregava qualquer trabalho ou feito alguma frequência, via uma série como forma de recompensa, mesmo que tivesse outra frequência passado dois dias”.

 

Uma paixão

Francisco Teixeira, de 22 anos, levou a sua paixão por séries mais longe e acabou por licenciar-se no curso de Cinema, na Universidade da Beira Interior. “A minha relação com séries é bastante próxima, poder-se-ia até dizer um pouco problemática, no sentido em que passo muito tempo da minha vida à frente da televisão ou do computador”, admite. Para o jovem apaixonado por cinematografia, é nestas “obras audiovisuais” que procura respostas para dúvidas e questões da vida. Atualmente, com a situação pandémica a limitar as saídas de casa, Francisco ocupa entre seis e 10 horas do seu dia à visualização de séries e filmes.

 

O espelho da sociedade

Apesar de não se ter especializado em cinema, Filipe Duarte, de 24 anos, operador de caixa, mas apaixonado por tecnologias, também ocupa a maior parte do seu tempo, entre séries, animes e filmes. “Depois de desistir de uma das minhas atividades extra curriculares, o karaté, o meu tempo livre começou a ser passado em frente ao ecrã. Tanto que o sofá já começou a ganhar a forma do meu corpo”, conta. Quando não tem trabalho, Filipe passa sete a oito horas do seu dia a ver séries. “As séries, além do desenvolvimento de opiniões que nos dão, têm o poder de transformar as nossas perspetivas nos mais variados tópicos, independentemente de serem séries realistas ou fantásticas”, justifica. Filipe considera que existem sempre paralelismos que podem ser feitos com o dia-a-dia e essa é a magia destas obras audiovisuais.

 

O declínio da televisão

Segundo o relatório do Observatório Europeu do Audiovisual (OEA) sobre tendências de consumo de serviços de televisão por subscrição a pedido (Video on Demand ou VOD) em 2020 no espaço da União Europeia, Portugal conta com 14 serviços de televisão por subscrição e cerca de 1,5 milhões de subscritores, sendo a plataforma Netflix líder de mercado. A alteração no consumo de conteúdos audiovisuais é evidente e a televisão tem sido esquecida pelas novas gerações, que apostam em novos operadores, como as plataformas de streaming.

De acordo com o OEA, os três operadores VOD com maior relevância no mercado português são a Netflix (47%), a AppleTV (21%) e a Amazon (13%). Reportando-se a 2019, o relatório aponta que 22 em cada 100 lares portugueses tinham acesso a pelo menos um serviço de televisão por subscrição, valor acima da média da União Europeia (18 em cada 100).

Em 2010 existiam 28,7 milhões de subscritores europeus de serviços VOD, mas uma década depois, o valor aumentou para 140 milhões de subscritores.

“A migração do espectador de plataformas tradicionais de televisão para as plataformas de streaming é um fenómeno imparável, que continuará a crescer por muitos mais anos”, afirma Francisco Teixeira. Para o jovem licenciado em Cinema, essa migração está relacionada com o facto de os serviços de streaming nos possibilitarem ver as nossas séries preferidas “em qualquer lado, em qualquer momento, em qualquer ecrã”. “Há também a questão da ânsia e impaciência por parte das pessoas que querem saber como é que as histórias acabam o mais rápido possível. Só os streamings conseguem entregar temporadas inteiras de uma só vez, coisa que um canal televisivo nunca conseguirá igualar”, acrescenta.

Se antes se desesperava pelo lançamento de cada episódio em determinado canal de televisão, se passava grande parte do tempo a fazer zapping, com o objetivo de encontrar o programa certo, atualmente está tudo à distância de um clique. “No início, começou por ser um complemento ao que dava na televisão, agora tudo o que se faz na televisão, mesmo as mais inteligentes, está ao nosso alcance no bolso do casaco. Vivemos tempos em que temos de estar a par de tudo o que é trendy e visto por massas”, explica Filipe. Geralmente, estas tendências começam nos Estados Unidos da América, sendo por isso exibidas em fusos horários diferentes. Contudo a internet elimina essa discrepância de horários, fazendo com que “todos tenham acesso aos mesmos episódios ao mesmo tempo”.

Enquanto uns se preocupam mais com questões de rapidez, facilidade de acesso e independência na hora de visualizar uma série, outros, através das plataformas de streaming, fogem às repetições e publicidades inevitáveis nos canais televisivos: “Na televisão as séries tendem a ser repetidas, fazendo com que a audiência se canse. O streaming – Netflix, Disney +, HBO, entre outras – juntam tudo na mesma plataforma, sem zapping, nem publicidades chatas pelo meio”, explica Ricardo Anapaz.

“Basta saber o que se quer ver ou escolher algumas das opções que nos são sugeridas com base naquilo que já vimos ou que temos planeado para ver. Eu não vejo TV, mas tenho três contas de streams de vídeo diferentes”, acrescenta o barman.

Apesar de ter concluído que o panorama dos serviços de televisão por subscrição está “ainda em construção e longe de um equilíbrio”, o Observatório Europeu sublinha uma alternativa definida no que se entende sobre o que é o mercado televisivo.

Atualmente a dinâmica baseia-se na coabitação entre a televisão tradicional e os operadores de serviços VOD, com benefícios recíprocos em termos de distribuição. “As empresas europeias e locais conseguem funcionar ao lado de operadores internacionais diferenciando a sua oferta de conteúdos”, recorda o OEA.

Os dados são divulgados numa altura em que a União Europeia processa uma transição legislativa sobre audiovisual para uniformizar e regulamentar, entre todos os Estados-membros, a oferta de serviços de comunicação social audiovisual, que inclui canais de televisão por subscrição, plataformas de partilha de vídeos, como o YouTube, e serviços audiovisuais a pedido.

Em Portugal, a legislação que entrou em vigor no mês de fevereiro prevê que aqueles operadores fiquem sujeitos “ao pagamento de uma taxa anual correspondente a 1% do montante dos proveitos relevantes desses operadores”. O produto da cobrança dessa nova taxa reverte para as receitas próprias do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA).

As plataformas terão também obrigações de investimento em cinema e audiovisual em Portugal, à semelhança do que já acontece atualmente com outros operadores. Essa obrigação de investimento é exercida com “total liberdade de escolha” e caso não seja possível apurar o valor dos proveitos relevantes dos operadores, o valor anual de investimento é fixado em quatro milhões de euros.

 

O poder transformador das séries

Mas por que razão são as séries tão atrativas?

Para Carolina, uma série é sempre uma história que nos contam e, como em qualquer história, a imaginação viaja e abre-se a porta para novas perspetivas, novas culturas. “Dou o meu exemplo com a série Unorthodox. Passei a conhecer a cultura judaica ultra-ortodoxa e ainda fui pesquisar mais, graças à série”. Uma das coisas mais bonitas nestes “filmes, divididos por episódios”, diz a jovem, é não só a sua capacidade de nos fazer compreender melhor certos comportamentos de algumas pessoas, mas também a capacidade de nos fazer alterar os nossos próprios comportamentos, contribuindo para o quebrar de preconceitos e estereótipos.

Francisco dá ainda mais relevo a esse poder transformador: acha que a missão das séries é a mesma que dos filmes – inspirar a mudança, tanto num só indivíduo ou numa sociedade inteira. “Muitas das mudanças que acontecem no mundo têm como forte aliado o audiovisual. A meu ver, o avanço da humanidade em questões de racismo, ambientalismo, entre outros, foi muito ajudado por algumas abordagens que apenas são possíveis concretizar neste meio”, defende.

Até que os olhos se fechem de cansaço

“Quem é que nunca cometeu loucuras por amor?!”, interroga Filipe. “Faço loucuras e maratonas quando não consigo esperar pelo próximo dia para ver o que vai acontecer no episódio seguinte. Já fui trabalhar sem dormir mais que uma vez, porque digo para mim que é o último episódio e, quando reparo no relógio são seis da manhã”, admite.

O jovem apaixonado por tecnologia conta ainda a sua maior loucura relacionada com as séries: “Fui para o exame de condução depois de ter feito uma direta por causa de uma série e se tenho dois dias de folga seguidos e estou a seguir uma boa história, não dormir é garantido”.

Já Ricardo confessa que durante alguns anos as séries foram a sua salvação contra as insónias. Via séries até ficar com sono, mas com o passar do tempo, isso acabou por se tornar um hábito: “Por séries nunca cometi a loucura de não ir trabalhar, mas admito que já fui trabalhar num estado lastimável com apenas duas horas de sono”.

Mas estas “pequenas loucuras” de privação de sono podem facilmente ser acompanhadas por uma tendência de isolamento, acabando por condicionar a vida de gerações que vivem com os olhos postos no ecrã. Carolina desabafa que teve de meter stop a esse hábito insaciável de ver séries: “Comecei a ter uma visão diferente daquilo que queria para a minha vida. Não queria chegar ao final do dia e pensar que a única coisa que tinha feito de produtivo tinha sido ficar deitada na cama a ver séries. Não são esses os dias que estarão na nossa memória quando formos velhinhos”. A jovem percebe hoje que acabou por perder bons momentos de vida ao ar livre e de convívio pela “sede” de ver mais um episódio. E, por isso, optou por alterar as suas prioridades: “Parei de querer viver e sentir a vida dos outros, lembrei-me que tenho a minha e que posso fazer dela a série que eu quiser”.