Há quem lhe chame a abominação de um céu raso, quando os deuses abandonam a imaginação dos homens, só nós próprios restamos para nos espiarmos, e a cultura chega àquele ponto se saturação em que mastiga por igual profecias e resmungos. O real boceja as suas ninharias, repete-se em horrores esventrados, e tornamo-nos prisioneiros da nossa moral. O escândalo não provoca já arrepios, torna-se uma maleita que vai e vem, uma armadilha patológica. Foi a vez de Woody Allen se fazer ouvir numa rara entrevista à CBS, a cadeia de televisão norte-americana, e tendo embora sido disponibilizada no passado domingo, relegada pela estação para o serviço de streaming Paramount+, foi gravada já em julho do ano passado, mas o cineasta não faz mais do que insistir que está “perfeitamente inocente” de tudo aquilo de que é acusado, ou seja, mantém que nunca abusou sexualmente da filha adoptiva, Dylan Farrow. Mas se garante que as acusações que remontam a 1992, se tratam de um embuste, e que Dylan foi sujeita às maquinações da mãe, Mia Farrow, que a arrastou para um elaborado plano de vingança, depois de Allen a ter deixado, envolvendo-se com outra das suas filhas adoptivas, Soon Yi-Previn, que Mia adoptara durante o seu casamento com o compositor André Previn. Assim, se Allen se tem queixado que o seu lado da história não sido contado, na resposta às questões do jornalista Lee Cowan, não acrescentou nada de novo, e vestiu bem os seus 85 anos, e o cansaço de, quase três décadas depois, estar ainda a lidar com este escândalo que praticamente obliterou a sua carreira nos EUA, fazendo dele um dos exemplos mais óbvios desse programa de justiça social conhecido como “cancel culture”.
Há muito que Allen não se expunha a um interrogatório num canal público, e se o fez foi para tentar conter os danos do documentário “Allen v. Farrow”, dos realizadores Kirby Dick e Amy Ziring, cujo quarto e derradeiro episódio foi exibido pela HBO há pouco mais de duas semanas. Allen tem-se escusado a responder a entrar em detalhes, a responder especificamente às persistentes acusações que estão, por fim, a determinar uma sentença bastante pesada por parte do tribunal da opinião pública. O cineasta agarrou-se como sempre à tese da intriga malevolente, tentando poupar a filha que, aos 35 anos, segundo ele, continua refém de uma guerra que a sua ex-companheira lhe tem movido desde a separação. “Acredito que ela pensa mesmo aquilo. Ela era uma boa miúda. Não acredito que esteja a inventar nada. Nem acredito que esteja a mentir”, disse Allen na entrevista. “É tão absurdo, mas o estrago já está feito”, vincou. “Preferem agarrar-se, se não ao facto de a ter molestado, à possibilidade de o ter feito. Mas nada do que fiz com a Dylan em toda a minha vida pode ser interpretado dessa maneira”, prosseguiu. O realizador adiantou ainda que não voltou a ter qualquer contacto com a filha depois da acusação, deixando claro que gostaria de tentar uma reaproximação. À altura dos alegados abusos, Dylan O’Sullivan Farrow tinha apenas 7 anos. É a mais velha dos três filhos de Mia Farrow e Woody Allen, sendo ela e Moses adoptivos e o terceiro, Ronan, biológico. A relação entre o casal durou entre 1980 e 1992, e nesse período Farrow participou em 13 filmes de Allen. Foi, por isso, uma união bastante frutuosa, mas que se dissolveu de forma atroz, deixando um nauseabundo rasto para o qual o regime mediático contribuiu de forma decisiva, acicatando a disputa, trazendo a lume novos detalhes sórdidos, com os aliados de Allen a traçarem de Farrow a imagem de uma mulher viciada em comprimidos e que negligenciava os tantos filhos com que tentava cobrir o seu desamparo, ao passo que o seu campo, mostrava o cineasta como um ser engolido pela sua prepotência, que usava o seu poder para aliciar e actuar como predador sexual, mantendo relações com mulheres mais novas e, até, em alguns casos menores de idade.
Um dos aspectos mais inquietantes da investigação de três anos levada a cabo por Kirby Dick e Amy Ziring prende-se com a forma como Allen se terá servido da sua influência na cidade que não prega olho para travar o processo que lhe foi movido pelas autoridades com base nas acusações contra ele, isto no auge da sua influência, quando os seus filmes se confundiam com a própria imagem que Nova Iorque tinha de si mesma, elaborando o próprio metabolismo das suas fixações românticas e até as neuroses da sua classe mais abastada e absorvida com a afanosa vida cultural. O terceiro episódio do documentário é bastante convincente na hora de demonstrar a teia de pressões exercidas pelo cineasta e pela sua equipa de forma a impedir que fosse formalizada uma acusação contra ele. O documentário da HBO é especialmente acutilante ao apontar o dedo a uma campanha para abafar o caso, deixando de mãos atadas aqueles a quem foi confiada a tarefa de apurar a credibilidade do testemunho prestado por Dylan Farrow. Recorde-se que, de acordo com o seu testemunho, os abusos ocorreram num período de não mais de vinte minutos, na casa de campo do clã Farrow, em Bridgewater, no estado do Connecticut. Woody era uma visita frequente, e costumava passar longas temporadas naquela casa, e nessa tarde, estando Mia ausente, uma das baby-sitters terá visto o realizador com a cabeça deitada no colo da filha. Depois de Mia ter tido conhecimento deste incidente, o qual era apenas mais um dos tantos comportamentos inadequados que o seu parceiro tinha tido na relação com a filha adoptiva, ao ponto de ter chegado a concordar em fazer terapia e em guardar a distância, quando questionou a filha, ela disse a Mia que o pai lhe tinha tocado nas “partes privadas” depois de a ter levado para o sótão da tal casa de campo. Nos dias que se seguiram, Mia filmou a filha sempre que esta relatava os alegados abusos. Se as acusações contra Allen não chegaram a ser comprovadas, e se este foi ilibado em tribunal, se depois a sua defesa em público se centrou sempre na ideia de que a ex-companheira nunca aceitou que ele se tenha apaixonado por Soon-Yi, o documentário escava mais fundo, e explora uma cronologia de encontros entre o realizador e a filha adoptiva de Mia Farrow que sugerem que o envolvimento entre os dois começou quando esta era ainda menor de idade, ou seja, bem antes de Mia ter descoberto um conjunto de polaroides sexualmente explícitas da filha no apartamento do namorado, em janeiro de 1992. Nessa altura, Sonn-Yi tinha já 21 anos.
Mas voltando atrás, às pressões políticas que puseram fim à investigação conduzida pelas autoridades nova-iorquinas, o documentário explora de forma bastante convincente os eventos que levaram à demissão de Paul Williams, um funcionário da New York's Child Welfare Administration com uma folha de serviço impecável que, depois de ouvir o testemunho de Dylan Farrow, considerou-o não apenas credível como entendeu que havia matéria suficiente para abrir uma investigação criminal contra Allen. Embora Williams tivesse já lidado com inúmeros casos similares, tendo sido alvo de louvores pelo trabalho que até ali desempenhara para aquela agência, foi-lhe dito que, tratando-se de um caso com grande repercussão mediática era normal que o processo acabasse na mesa dos seus superiores. Mas quando Williams se deu conta de que o plano passava por fazer desaparecer o seu relatório, não se calou, e, ele mesmo se tornou alvo da ira da administração tendo sido afastado por ser “insubordinado” e por não acatar as instruções dos seus superiores. Paul Williams não se ficou. Acabou por processar o seu empregador, ou seja, a administração camarária nova-iorquina, e não apenas foi reinstituído no seu antigo posto como lhe foi pago os salários que deixou de receber nesse período. De qualquer modo, a campanha de silenciamento que foi alvo deixou as suas marcas, e este funcionário em tempos tão comprometido com as suas funções acabou por assumir um perfil bem mais discreto, recusando-se a ser entrevistado para “Allen v. Farrow”. Ou seja, como diz uma das assistentes sociais que participou na investigação, Williams acabou por entender que de nada vale bater de frente com “as elites”, essas que “podem fazer o que querem, esquivando-se às consequências”.
Quanto a Woody Allen, embora esteja mais presente do que nunca nos jornais, passou a ser encarado pela indústria do cinema como uma espécie de pária, e a CBS News não se limitou a deixar a entrevista na gaveta por uns bons meses, como a emitiu num pacote com a entrevista que foi dada por Dylan Farrow, em 2018, a Gayle King, e agregada ainda a uma peça sobre a “cancel culture”, com o programa CBS Sunday Morning a convidar a crítica cultural e académica especialista em feminismo Aruna D’Sousa essencialmente para lavas as mãos neste sórdido enredo que, ao fim de quase três décadas, começa claramente a pender para o lado do clã Farrow. Assim, D’Sousa explicou que o simples facto de ser dada a oportunidade a Allen de se defender, conferia-lhe “uma espécie de legitimidade”, isto “só pelo facto de estar a ser entrevistado por um grande programa de informação”. E com esta sentença sumarizou bem a perigosa idiotice da “cancel culture” que se arroga do direito de declarar a morte social de quem quer que seja com base em juízos e convicções formadas no tribunal da opinião pública. Assim, e num ambiente em que tudo tende para o consumo e a própria razão moral é apenas outra função do entretenimento social, forma-se este júri alegremente irresponsável que se anima ao ver as figuras públicas forçadas a desfraldarem-se de forma contínua, a verem as suas vidas privadas alvo de um exame voyeurista, insaciável, de forma que o público possa afugentar o tédio com estes ímpetos justiceiros. E com isto a atenção e o juízo crítico vai-se lacerando em polémicas que, no fundo, importam pouquíssimo a quem as julga, formando a sua opinião e voltando-se para a distracção seguinte. Mas, uma vez que analisar e exibir este conflito prejudicaria os interesses do regime do espectáculo, na ausência de uma confissão, a própria bandeira progressista serve de mortalha ou sudário para o sentido de decoro e de reserva de um conjunto cada vez maior de pessoas desejosas “acima de tudo de dar a sua opinião, de gritar os seus sentimentos, raivas e desilusões, e de exibir a nobreza e a sensibilidade das suas boas almas, sem se preocupar se os modos e as formas sob os quais isto se verifica, objectivamente, auxiliam ou impedem a defesa e a afirmação desses valores em que se acredita e pelos quais se combate, e pelos quais, se realmente se acredita neles e não só no seu próprio estado de espírito, se deveria estar pronto a sacrificar alguma coisa, até – se necessário – as efusões do seu próprio estado de espírito” (Claudio Magris).