Viva Vila
Se alguém disser que a gula é um pecado
E um dia for ao Vila Lisa comer
Sai de lá a dizer: “seja eu danado
Se o inferno me oferece tais prazeres”
Ria de alhada, sopa de cação,
Rabo de boi, amêijoas, lulas fritas
Pargo no forno, migas ou chambão
Por menos pecam santos e ermitãs.
…E peco eu, que me faltou talento
Para louvar do Vila a inspiração
É preciso ter mão no condimento!…
E se em tudo há-de haver uma lição
É qu’e melhor a ementa que o soneto
A ementa é divina, os versos não
António-Pedro Vasconcelos
Foi com estes versos que o realizador português, amigo e cliente de Vila, disse o que lhe ia na alma numa das passagens pela Mexilhoeira Grande, Algarve. “Um grande na Mexilhoeira. O Vila Lisa é um oásis luso de bem comer”, escreveu o papa da crítica gastronómica portuguesa, de seu nome José Quitério.
Já se percebeu que José Duarte Martins da Silva, vulgo Vila, que morreu na quarta-feira, aos 77 anos, ficará ligado à história da gastronomia portuguesa e não só. Nascido na Mexilhoeira Grande, José Vila lembrava há seis anos, numa entrevista ao SOL, o que se recordava da infância.
“A lembrança que tenho dessa altura da Mexilhoeira é a da família e convivência com amigos. Lembro-me de gostar muito disto. E de ir comer a casa da minha avó, que me convidava para ir comer feijão com arroz e sandes de toucinho… Era quase só isso que se comia. Lembro-me da minha mãe, que era fantástica, dava-me educação, e o meu pai não. Não me dava nem deixava de me dar. Mas a minha mãe olhava para mim e eu respeitava. Até ela falecer”.
“O adro da igreja era o local de eleição onde se juntava a malta à noite no verão. O Vila costumava subir para o muro e dizia que ia cantar para a Mexilhoeira inteira. E punha-se a cantar Maria do Céu. Isto nos anos 60, era ele puto, devia ter 13 anos. Eu tenho menos seis anos que ele. Eu era de outra geração mas na altura já acompanhava assim à ilharga estas aventuras. Ele já era velho (risos)”, contava na mesma entrevista o seu amigo de uma vida, o Lisa.
Vender quadros para beber copos Com 13 anos, já Vila ia para as tascas de Olhão, depois de pintar algo com o seu amigo Benjamim. Antes tinha sido expulso da escola de Lagos. “Tentei namorar com a filha de uma professora (risos). Depois disso ainda estudei em Silves e só depois em Faro. Quando estudei em Faro vivia na Luz de Tavira, na casa do meu padrinho, que era padre”, contou.
Com a sua paixão por recitar poemas de Vargas Vila no largo da igreja, acabou por ficar com o apelido do escritor. “Foi o pessoal da terra que me deu o nome”, disse. A sua faceta de pintor ilustra bem a sua forma de vida. “Os quadros que pintava na altura não tinham nada a ver com os que pinto agora, como é lógico. Tenho alguns em casa a óleo que talvez sejam dessa altura. Mas o objetivo de pintar nessa altura, para além de ser para beber copos, era quase para sobreviver.
A cada rifa que vendia pagava uma rodada à malta que estava no António José, na Luz de Tavira”. E contou ainda: “Nem sei como arranjava os pincéis e as tintas, só sei que os tinha. Sempre me desenvencilhei e sempre fui muito explosivo, acho que a vida é feita para se viver, não é para se estar acomodado. Sempre pensei isso e ainda hoje penso. Desde puto que tenho ação para tudo”, acrescentou.
Antes de ir para a tropa, ganhou a alcunha de Zé Bandido “porque andava descalço de inverno e era vadio na linguagem desta gente, e andava de barba já nessa altura”.
Um bar na Guiné Com 20 anos foi para a tropa, fazendo a comissão na Guiné. “Montei lá um bar e tudo. Eu era de engenharia e só ia para o mato desarmar minas, mas não sabia. A minha especialidade era minas e armadilhas mas nunca passei cartão a isso. Vá lá que nunca me aconteceu nada. Quando fui para a Guiné aluguei um quarto grande em Bafatá onde estava à frente daquela secção. Mandava em dois soldados (risos). Não havia quartel. No quarto fiz uma divisória e fiz uma espécie de bar, uma coisa para beber copos, e convidava gajos porreiros que ia conhecendo para irem lá à noite. Só entravam desfardados. E entravam com um peúgo preto e outro branco, unidos venceremos. Gente contra a guerra”.
No regresso da guerra, inscreveu-se na Ar.Co e numa escola de mosaico. Por essa altura dava-se com Manuel da Fonseca, com Ary dos Santos e frequentava o Galo no Parque Mayer. Até que chegamos a 1981, ano em que abriram a adega. “Aí acho que posso intervir. Numa bela manhã de verão na Meia Praia, para aí em julho, aparece-me o Vila com um colchão repimpa debaixo do braço, daqueles colchões antigos que se levava para a praia. Ele andava sempre com um desses, era cheio no início do verão e só era vazado no fim (risos dos dois). Disse-me que ia almoçar mas que estava chateado porque os restaurantes só tinham comida da escola hoteleira. Isto foi em 80. Perguntei-lhe qual era o problema. Ele responde-me que eu tinha uma casa na Mexilhoeira vazia e que podíamos abrir uma casa de comidas. Achei que era mais uma ideia maluca do Vila”, recordou Lisa na referida entrevista.
O Zé Bandido “Como já dissemos, era conhecido em Lagos como o Zé Bandido. Naquele dia fui dar um mergulho mas não pensei mais no assunto. Só que meteu-se-lhe aquilo na cabeça e acho que eu ainda nem tinha acabado o mergulho e já estavam os pedreiros a partir a casa”, continuava Lisa.
“A casa era do meu pai, que era uma pessoa muito conservadora, muito antiga, chega aqui, vê esta confusão toda e manda embargar a obra. Lá falámos com ele e depois da hora de almoço já estava a ajudar os pedreiros a trabalhar. Foi convencido a aderir ao projeto”.
O sucesso foi quase imediato, apesar das condições austeras da casa. Mesas e bancos corridos. Depois de Miguel Esteves Cardoso ter colocado a Vila Lisa no mapa, cedo personagens como António-Pedro Vasconcelos, Mário Soares, Eduardo Barroso ou Laurinda Alves se mostraram também rendidos.
Alguns famosos internacionais também ajudaram a dar algum colorido à fama da Vila Lisa. “James Gandolfini, o Tony Soprano, dormiu em cima da mesa! Aquela ali (apontam para uma das mesas corridas). E encheu a mesa, era muito grande (risos). Comeu um prato de sopa e depois foi-se deitar. Ele veio com o Robert De Niro”, recordaram os dois amigos na entrevista.
Mas o primeiro estrangeiro famoso talvez tenha sido Serge Gainsbourg. “Trazia uma série de raparigas e rapazes novos com ele e depois andava do lado de fora, de janela em janela, a pedir bacalhau, que nós não tínhamos. Depois não comia nada, só fumava Gitanes à janela, sempre de copo na mão. Só bebia vinho, não comia, andava sempre de pé. Um dia lá lhe fizemos bacalhau, passou a noite inteira a gritar ‘bacalao’ mas não comeu nada (risos). Vinha de táxi do hotel Penina, o táxi ficava ali fora à espera dele. No início ainda contávamos o dinheiro que ele deixava, depois deixámos de o fazer. Se chegasse, chegava. Mas a maioria das vezes sobrava, uma vez a conta dele era 25 contos e ele deixou 45. Quando era para pagar, agarrava no maço de notas, nem via quanto era”.
Quem conheceu bem e muito conviveu nos últimos anos com Vila foi Bernardo Reino, vulgo Gigi. “Eu já tinha uma ligação ao Vila desde as comezainas nos meus tempos de Sintra na Adega Saraiva, em Nafarros.Nas minhas férias na Prainha, no Alvor, fui várias vezes ao Vila, e ainda nem sonhava virar tasqueiro de Praia. Depois foram anos seguidos e juntos fomos cimentando uma amizade eterna, sendo que uma das grandes fotos do Vila está no meu restaurante – do livro dele Coisas da Terra e do Mar. Muito eu brincava com ele até naquela dos incautos que se sentavam e lhe pediam a carta. E ele respondia: ‘Mas os meus amigos vêm cá para ler ou para comer?’. Ainda não assimilei, o Vila era eterno. Ainda há poucos dias o ‘obriguei’ a ligar para a Tia Matilde onde num almoço homérico entrámos ao meio-dia e saímos à meia-noite”, recordou o dono do célebre restaurante da Quinta do Lago.