O regresso dos mortos-vivos


Esta coisa peçonhenta, peganhenta que se nos colou ao dia-a-dia, pais com medo de filhos, irmãos incapazes de abraçar irmãos, a distância alargando-se em círculos concêntricos mas cada vez mais espaçados como quando uma pedra mergulha na face plácida de um lago sem tremuras.


Às vezes penso: o que farei com os meus mortos quando lhes abrirem as portas das sepulturas onde se enfiaram há tanto tempo? Falo dos mortos-vivos, claro! Os mortos ainda por morrer. Os mortos que quiseram fugir desta moléstia sem nome e sem face e desapareceram da minha vida há mais de um ano. Tenho amigos tão antigos que, mesmo se estiver 30 anos sem os ver, o reencontro será apenas como se nos tivéssemos separado na véspera. E, de repente, veio isto.

Não sei como dizer isto. Esta coisa peçonhenta, peganhenta que se nos colou ao dia-a-dia, pais com medo de filhos, irmãos incapazes de abraçar irmãos, a distância alargando-se em círculos concêntricos mas cada vez mais espaçados como quando uma pedra mergulha na face plácida de um lago sem tremuras. Às vezes penso: para lá dos telefonemas, cada vez mais esparsos – tão diferente do confinamento de Março do ano passado -, das mensagens cada vez mais curtas, como serão os recomeços. Interrompemos conversas, interrompemos projetos, interrompemos filosofias, por mais vãs que fossem. Deixámos pedaços inteiros de vida por viver.

O regresso dos nossos mortos-vivos não será como retirar o sinal de “Volto Já!” da maçaneta da existência. Algo se perdeu, certamente. E é aí que penso ainda mais: o que se perdeu será recuperável? Tenho saudades de gente. Tenho saudades de seres humanos. Tenho saudades de mamíferos com regras mínimas de civilidade. Onde estão vocês, meus amigos mortos? Voltarão um dia com vontade de viver? Voltarão com vontade de viver a vida que vivíamos antes desta insuportável amostra de morte que é o tédio?

Não, não sei responder-vos. Nem sei se saberão responder-me. Espero apenas. Espero que, num dia de sol, regressem dos vossos túmulos da ausência e, talvez desajeitadamente, aceitem o abraço que guardei para vocês no frigorífico de um companheirismo pronto a derreter ao calor morno da ternura.

O regresso dos mortos-vivos


Esta coisa peçonhenta, peganhenta que se nos colou ao dia-a-dia, pais com medo de filhos, irmãos incapazes de abraçar irmãos, a distância alargando-se em círculos concêntricos mas cada vez mais espaçados como quando uma pedra mergulha na face plácida de um lago sem tremuras.


Às vezes penso: o que farei com os meus mortos quando lhes abrirem as portas das sepulturas onde se enfiaram há tanto tempo? Falo dos mortos-vivos, claro! Os mortos ainda por morrer. Os mortos que quiseram fugir desta moléstia sem nome e sem face e desapareceram da minha vida há mais de um ano. Tenho amigos tão antigos que, mesmo se estiver 30 anos sem os ver, o reencontro será apenas como se nos tivéssemos separado na véspera. E, de repente, veio isto.

Não sei como dizer isto. Esta coisa peçonhenta, peganhenta que se nos colou ao dia-a-dia, pais com medo de filhos, irmãos incapazes de abraçar irmãos, a distância alargando-se em círculos concêntricos mas cada vez mais espaçados como quando uma pedra mergulha na face plácida de um lago sem tremuras. Às vezes penso: para lá dos telefonemas, cada vez mais esparsos – tão diferente do confinamento de Março do ano passado -, das mensagens cada vez mais curtas, como serão os recomeços. Interrompemos conversas, interrompemos projetos, interrompemos filosofias, por mais vãs que fossem. Deixámos pedaços inteiros de vida por viver.

O regresso dos nossos mortos-vivos não será como retirar o sinal de “Volto Já!” da maçaneta da existência. Algo se perdeu, certamente. E é aí que penso ainda mais: o que se perdeu será recuperável? Tenho saudades de gente. Tenho saudades de seres humanos. Tenho saudades de mamíferos com regras mínimas de civilidade. Onde estão vocês, meus amigos mortos? Voltarão um dia com vontade de viver? Voltarão com vontade de viver a vida que vivíamos antes desta insuportável amostra de morte que é o tédio?

Não, não sei responder-vos. Nem sei se saberão responder-me. Espero apenas. Espero que, num dia de sol, regressem dos vossos túmulos da ausência e, talvez desajeitadamente, aceitem o abraço que guardei para vocês no frigorífico de um companheirismo pronto a derreter ao calor morno da ternura.