No exercício da função que desempenho, a de deputado à Assembleia da República, foi-me imposto o dever de tornar públicos – por via de uma declaração – um sem número de elementos que, em condições normais, apenas a mim me diriam respeito. Da declaração de interesses que os deputados e outros titulares de cargos públicos preenchem consta abundante informação, alguma da qual nem sequer diz respeito exclusivamente aos próprios.
Revela-se o cônjuge ou unido de facto; em que instituição estão sediadas as contas bancárias, os respetivos montantes e como se encontram empregues; créditos bancários; participações em sociedades comerciais ; veículos de índole diversa; imóveis ou partes dos mesmos; enfim, só para ilustrar aquilo que, de cabeça e sem cábula, me ocorre dos elementos que devo pontualmente descrever e que, caso sofram alterações, sou compelido a manifestá-las, atualizando a declaração em causa.
No âmago desta compressão do direito à reserva da vida privada de quem está subordinado a esta obrigação, encontra-se um propósito maior, indeclinável, argamassa do Estado de direito democrático, qual seja o de realizar o princípio da transparência, de modo a que os cidadãos, conhecedores e em liberdade, bem como as entidades fiscalizadoras, estejam aptas a escrutinar os atos ou omissões daqueles que foram mandatados para os representar.
Perante coisa tão prosaica, é fascinante que perante uma proposta do PSD que visa tornar obrigatória a declaração de filiação a todas as associações, não a umas ou outras, mas a todas, nos deparemos com tamanha barragem de acusações, algumas das quais traçam uma analogia entre esta proposta e episódios históricos de intolerância e estigmatização, frustrando as mais elementares liberdades individuais, prelúdio de um caminho totalitário e de uma senda persecutória que macularia a iniciativa em causa.
O exagero, o absurdo, cuja motivação para tão viva censura não será a “ confissão” de filiação clubística, académica, cultural ou benemérita, mas o desejo de preservar intacta, no recato, o conhecimento de filiações legítimas, que respeitam aos próprios, a organizações que é sabido que não é comum revelar-se a sua adesão, a Maçonaria, por exemplo. Nada tenho contra essas ou outra substituições.
No que à Maçonaria respeita, reconheço o papel relevante que exerceu em vários períodos da história e não tomo, por princípio, os seus aderentes como uma chusma de gente desonesta, com propósitos inconfessáveis e que tem como propósito uma soturna conspiração para dominar o que quer que seja. O caso é que, e por isso mal anda a crítica, a obrigação em causa apenas se antepõe àqueles que venham a desempenhar um conjunto de cargos públicos, e não à generalidade dos cidadãos, matando essa peregrina ideia de voyeurismo legislativo que animou algumas hostes.
O busílis é que ou desejamos uma democracia em que todos os interesses sejam claros, sujeitos a escrutínio, impedindo indesejáveis zonas de sombras – essas sim, estigmatizantes –, ou, pelo contrário, admitimos uma cultura de desconhecimento, onde poderes fácticos podem prosperar e forjar ligações que escapem ao olhar comum. É, por isso, que se alargaram as obrigações declarativas, desde sempre. Não para expor quem quer que seja, mas para permitir à sociedade avaliar aqueles que os representam.