Fui ontem à noite verdadeiramente surpreendido pela inacreditável história de uma abusiva tentativa de controlo digital de movimentos dos alunos, supostamente em ambiente de exame, por parte, imagine-se, da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) que é só a principal responsável pela produção de juristas, políticos, deputados, governantes e até Presidentes da República deste país…
Antes de mais é preciso referir que a pandemia trouxe, efectivamente, problemas acrescidos no que ao controlo dos alunos diz respeito por causa dos sucessivos confinamentos que encerraram as escolas e as universidades. Pois, por mais qualidade que tenham as várias plataformas digitais usadas para a transmissão de informação e de conhecimento, em ambiente de aulas, não são, contudo, ideais para permitir aos professores um controlo mais apertado de comportamentos, movimentos e de concentração dos respectivos alunos que só em ambiente presencial é possível garantir.
Por maioria de razão, esse controlo absolutamente necessário aquando da realização de exames de avaliação, por forma a se evitar, o mais possível, fraudes descaradas com base no 'cabulismo' desenfreado pelo acesso à consulta de informação não permitida – como por exemplo legislação comentada e anotada, seja em papel ou em formato digital pelo simples acesso à internet – não é possível de garantir 'online', precisamente por nenhuma plataforma digital ser minimamente adequada a essa finalidade, última, de controlo à distância, sem que tal extravase e viole, grosseira e escandalosamente, os direitos mais básicos e fundamentais da privacidade e da liberdade individual de qualquer ser humano, mesmo as de um mero aluno de Direito…
Pretendia, assim, a Faculdade de Direito gravar movimento e som durante os exames realizados pelos alunos via plataforma digital, através de uma aplicação chamada "Proctorio", um software que regista – entre outras maravilhosas funcionalidades muito úteis à devassa inaceitável da vida privada de homens e mulheres livres numa sociedade evoluída de um qualquer Estado de Direito democrático, vigente em plena década de 20 do século XXI – o movimento, as alterações de ruído, bem como a captação da imagem do ecrã, permitindo a inevitável visualização do quarto, da sala ou de qualquer outra área da casa onde o aluno possa estar a fazer o exame. Isto é, uma aplicação capaz de gravar o som e a imagem dos respectivos alunos durante todo o tempo da prova escrita, sinalizando e detectando eventuais aumentos de ruído, ou alterações como o desviar do olhar do aluno do monitor durante um determinado período de tempo. Por outro lado, conforme foi noticiado, na vasta lista de permissões requeridas pela aplicação em causa, estão a “leitura e alteração de todos os dados nos websites visitados”, a “modificação de dados copiados e colados” (copy paste) e a “gestão das transferências”.
Dizia a nota circular, relativamente à obrigatoriedade de utilização desta aplicação informática por quem viesse a submeter-se aos citados exames escritos 'online' da FDUL, sob pena de reprovação, que se pretendia com a mesma, “assegurar a total integridade da aprendizagem”. E, digo eu, mesmo que essa invocada "integridade da aprendizagem" fosse, portanto, assegurada pela Faculdade de Direito, repito, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, com recurso à mais gritante falta de integridade moral e legal, com evidentes violações de princípios constitucionalmente consagrados quanto aos direitos liberdades e garantias dos cidadãos, bem como de vários diplomas legais como é disso exemplo o famoso Regulamento Geral da Protecção de Dados (RGPD).
Extraordinário!
Confesso a minha perplexidade, não deixando de me questionar, quem serão, afinal, estes génios que se lembram de colocar estas inovações tecnológicas ao serviço da ciência das leis, numa instituição de ensino superior como esta? Que nomes terão estes doutores de Direito responsáveis pela doutrina que se ali se ensina e se aprende?
Não posso ainda deixar de me questionar sobre que ligações políticas, ideológicas e até mesmo partidárias terão estes génios do Direito em Portugal? Pois não será de admirar que num destes dias os possamos ver sentados numa bancada qualquer do parlamento, a legislar sobre estas e outras matérias de idêntico valor jurídico. Ou, porque não, à frente de um ministério qualquer de um Governo da República!
Claro que, perante isto, os alunos ou melhor, alguns alunos – sim, porque nestas coisas há sempre quem tudo aceita e nada contesta – consideraram (e muito bem) o uso dessa ferramenta de controlo uma "violação da privacidade" e contestaram a decisão dando-a a conhecer ao público em geral, primeiro via redes sociais, designadamente no grupo interno dos alunos da Faculdade de Direito, no Facebook, que rapidamente se expandiu a outros grupos e redes, com centenas de publicações e comentários legitimamente indignados, acusando publicamente a instituição de proceder de forma ilegal e apelando aos colegas a denunciarem a situação à Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD). E, posteriormente, via órgãos de comunicação social, levando a Faculdade a dar o dito pelo não dito e a recuar – qual acto de contorcionismo – em pouco mais de 24 horas após este incompreensível bloqueio intelectual colectivo dos responsáveis directivos da FDUL.
Acabando, desta forma, a FDUL por ceder à razoabilidade e ao bom senso, traduzidos pela decisão da realização presencial dos referidos exames escritos. Repondo, assim, a legalidade dos actos que em nenhuma circunstância, jamais, deveriam ser colocados em 'standby' por uma qualquer instituição desta natureza, muito menos ainda, por razões históricas da própria conquista da liberdade e da democracia em Portugal, por esta Faculdade de Direito, em particular!
É caso para dizer que, de entre os tantos livros e calhamaços lidos e estudados pelos alunos de Direito nas diversas Faculdades, não se encontra a obra “1984” de George Orwell. Porém, parece que o “grande irmão” chegou à Faculdade!
Jurista
Escreve de acordo com a antiga ortografia.