Serotonina. O mais recente Houellebecq

Serotonina. O mais recente Houellebecq


Muitas vezes se escreveu já, cada publicação de Houellebecq gera excitação e uma logomaquia. Em Serotonina o autor fala pela voz do narrador-protagonista. Se assim é, e do ponto de vista da sua caracterização quanto às suas opiniões sobre a vida e a política, poderia destacar-se a forma como rechaça os “burgueses eco-responsáveis”


1.Um dia, Ozu confidencia-lhe os planos que tem para dali a 20, 30 anos. O seu regresso ao Japão, a vida que aí então projecta levar. Naquele momento, porém, Ozu, a jovem nipónica, pertencente à aristocracia e bem relacionada no mundo das artes, é a mulher de Florent. Sim, muito mais nova; é certo que, "pela ordem natural das coisas", se é que tal coisa existe, deverá partir da Terra depois daquele, mas o amor é ali e agora, e para sempre (p.63), o amor é eterno e, portanto, não se discute um seu (inadmissível) carácter temporário: como se atreve ela a pensar o pós-mortem dele (como se atreve a não ser toda já)? A dedicação e entrega devem ser completos, totais, não há espaço para o tempo do não amor dos dois. Eis como para Florent, no entender de muitos alter-ego de Houellebecq, no seu mais recente livro, Serotonina (Alfaguara, 2019, tradução de Valério Romão), a relação com Ozu, materialmente, ali se conclui (apesar de ainda permanecerem mais ou menos juntos por muito mais tempo); tão ácido sobre a vida e o humano e, afinal, (ou porque) tão romântico.

2.Florent é um engenheiro agrónomo, bem-nascido, trabalha para o Ministério da Agricultura, endinheirado. Ao longo de Serotonina, temos um narrador-protagonista, que procede a uma auto-biografia assente, fundamentalmente, em (reflexões, tirada de consequências em torno de) quatro relações (humanas) que estabeleceu durante a sua existência (até ao momento em que escreve): três delas com mulheres, Claire, Camille e Ozu – com quem estabelece uma filiação amorosa -, e uma com um homem, Aymeric, que surge como seu único amigo.
Florent dá-nos ainda conta da singeleza da relação com os seus pais, ou melhor, da singularidade do amor nutrido pelos dois que desagua, de resto, nesta paradoxal entrega total – num tempo de relações múltiplas e pouco apego, de solidão -, e, outrossim, e diversamente, um inserir-se nele (neste tempo), com a morte de ambos quando, depois de descobrir-se o cancro do pai, este e sua mãe encomendam comprimidos letais pela internet, e acabam, assim, por se suicidar (p.66: como que numa espécie de suicídio assistido…à distância), sendo que a mãe não possuía qualquer doença e era (relativamente) nova. Os pais de Florent são enterrados juntos no mesmo caixão.

3. Muitas vezes se escreveu já, cada publicação de Houellebecq gera excitação e uma logomaquia, sobre Serotonina, que, como se veio de dizer, o autor fala pela voz do narrador-protagonista. Se assim é, e do ponto de vista da sua caracterização quanto às suas opiniões sobre a vida e a política, poderia destacar-se que a) rechaça os "burgueses eco-responsáveis"(p.40) com um evidente escárnio sobre um modismo com traços religiosos (nesta linha, a recusa do gourmet (p.37) ou dos pratos ou cocktails que não deixam restar nada do tradicional; num dos episódios iniciais do livro, Florent vomita o peixe cru com arroz que comeu com Ozu; além de que despreza os inúmeros programas de culinária, mesmo que bem feitos, que passam, sistematicamente, nas tv's); b) resmunga contra a imersão regulatória (estatal) em tudo (diz Florent, por exemplo, como ficou admirado por permitirem que os pais fossem juntos, no mesmo caixão, a enterrar, porque normalmente tudo é proibido; mas este é um dos raros traços liberais do personagem); c) apresenta-se tanto como snob, a fazer questão de proclamar os seus privilégios – por exemplo, num seu apartamento tem uma suíte e, ao falar dela, descreve-a com certo pormenor e acrescenta que o faz para que "as classes populares", suas leitoras, entendam do que fala, como, ao mesmo tempo, se identifica com essas classes "de baixo" (nomeadamente, aqueles profissionais em vias de extinção como os que se dedicam à agricultura) – mesmo que aí recuse o sentimentalismo e logo esclareça que não está na situação daqueles, fugindo completamente a qualquer acusação demagógica; d) afirma-se, logo no início do livro, contra o comércio – contra uma sociedade comercial – e considera, mesmo, que a Holanda "não é um país, mas uma empresa" (já agora: Florent não se importa de distribuir adjectivos por diferentes nacionalidades, amalgamando, desta sorte, os cidadãos de cada uma destas em dados estereótipos; e) favorável à caça; f) contra o livre-cambismo (como sublinha muito na questão dos protestos dos agricultores); g) qualifica George W.Bush como "cretino" (p.112) e afiança que Franco criou o turismo de massas na Europa, ainda na década de 60, com Benidorm e Torremolinos; h) com gosto pelas armas (depressa se forma como/se torna em um bom atirador); i) crítico da UE; j) faz um certo elogio do bucólico (p.111); k) o desgosto com o artificialismo (18 cremes tinha Ozu, diz-nos) das mulheres (p.54) e, mais ainda, com a sua infidelidade…; l) lamenta limites de velocidade na casa dos 120 km/h (p.30), que tem por absurdos (assim sempre emprestando virilidade ao seu discurso); m) cura-se de alguém afastado de toda a "correcção" política, seja na linguagem – por exemplo, inúmeras vezes Florent refere-se a "larilas" ou "ratas" – seja nas acções: estamos perante um caso, por exemplo, de um assumido voyeur que espia e examina o computador de Ozu; que com os binóculos trata de saber o que faz um reformado alemão que a certa altura vive perto de si; contempla, da mesma forma, a vida de Camille. Contabiliza um sem número de relações sexuais com mulheres diferentes (p.79: aqui, aliás, Florent como que faz recordar Steiner, ao teorizar sobre como é ter relações sexuais com mulheres de outras nacionalidades, como é fazer sexo noutra língua), regista as (suas) traições às mulheres com quem partilhou a vida, gosta de pornografia; n) hostiliza, menospreza os políticos, ou a forma como hoje se faz política, quando, na parte final do livro, em se encontrando, durante bastante tempo, a ver televisão e se quer atento às questões sociais, se dá conta que não apenas sabe a posição que cada político vai assumir como as exactas palavras que dirá em cada caso, o que o deixa ainda mais transtornado do que se encontrava…
Não por acaso, Houellebecq é adjectivado, com alguma frequência, como reaccionário ou como tendo ideias que alguns militantes de uma direita extrema apreciam; para outros, trata-se, apenas, de um provocador; para muitos mais ainda, um escritor de mão cheia independentemente das opiniões das suas personagens…ou suas. Curiosamente, quanto às limitações, às quotas, impostas pela UE aos produtores de leite, Florent diz que só o Partido Comunista se interessa pela situação dos agricultores-produtores (e sabemos como, nomeadamente em França, muitos comunistas migraram para os braços da extrema-direita). Quando se dá a elaborações mais filosóficas, neste livro, Florent, ao mesmo tempo que enfrenta, com toda a crueza, a (sua) solidão, sem dúvida que se afasta, não sem ironia, do optimismo antropológico de Rousseau (num outro tropo ideológico evidente): "estava agora então na terra, como escreveu Rousseau, sem mais irmão, próximo, amigo ou sociedade além de eu mesmo. Batia bastante certo, mas a semelhança acabava ali; desde a frase seguinte, Rousseau proclamava-se «o mais sociável e o mais amante dos seres humanos». Eu não estava na mesma categoria; falei de Aymeric, falei de algumas mulheres, a lista é de facto reduzida. Contrariamente a Rousseau, tampouco podia dizer que tinha sido «proscrito da sociedade dos homens por acordo unânime»: os homens não se tinham de modo algum aliado contra mim; simplesmente acontecera não acontecer nada, a minha adesão ao mundo, já de si limitada, tornara-se pouco a pouco nula, até nada mais poder interromper o deslizamento"(p.222).

4.Um tópico com que se foi "vendendo" esta obra no nosso país passou pela referência, nesta, a um português, um Silva, como exemplo de alguém que apanhou o "elevador social". Com efeito, Joaquim Silva, fora "pedreiro", agora era dono de uma "tabacaria", não trabalhava tanto, apesar de muito, quanto outros trabalhadores tinham que o fazer, e ganhava mais, apesar de não demasiado, do que muitos empregados. Este Joaquim Silva foi sogro de Florent, durante um período de vida; recebeu-o bem em sua casa; não pretendia regressar a Portugal; boa gente, ainda que sem modos tão polidos quanto os dos pais do narrador-protagonista. Note-se: Joaquim Silva não tem referências em mais do que duas das 279 páginas que compõem este romance (nem, de modo algum, a sua presença tem especial relevância na obra).

5. Modo também como se procurou divulgar ou falar deste livro: este, aí estaria de novo o faro e a capacidade de captar o espírito do tempo por banda de Houellebecq, antecipou os gilets jeunes. Aqui, diga-se, a questão é bem mais séria do que a importância de Joaquim Silva na economia da obra. Em todo o caso, a "questão social" – se assim o quisermos dizer, para nos referirmos ao específico problema político que no romance suscitará uma certa convulsão social – surge a partir da pág.190 e, a meu ver, não constitui o tema central, decisivo, transversal à obra. É verdade, em todo o caso, que desde cedo, neste livro, se fala (do desaparecimento) dos empregos não qualificados (em função da automação) que condenaram (e condenarão) muitos ao desemprego ou se refere, por exemplo, a figura de Macron; mais interessante, ainda, porventura, os novos tempos exigentíssimos, duros, muito competitivos, completamente pragmáticos, lançados a partir de um olhar nada "ácido", nada "intolerante", nada "arrasador" – os adjectivos que costumam convir ao autor, em inúmeras recensões – sobre a actual juventude (académica): "o ambiente desta geração não era o mesmo, via isso com todos os seus amigos, quaisquer que fossem os seus percursos académicos: eram sérios, trabalhadores, davam grande importância ao êxito escolar, como se soubessem de antemão que o mundo não lhes daria nada de graça, que o mundo que os esperava era inóspito e duro. Por vezes, tinham necessidade de descomprimir, e então embebedavam-se em grupo, mas até as suas bebedeiras eram diferentes daquelas que eu havia conhecido: embebedavam-se brutalmente, bebiam a toda a velocidade quantidades enormes de álcool, como que para embrutecer o mais depressa possível, embebedavam-se exactamente como deviam fazer os mineiros na altura de Germinal – a semelhança era realçada pelo regresso em força do absinto, que atingia percentagens de álcool assombrosas, e que permitia de facto um tipo foder-se todo num tempo mínimo"(pp.144-145).
Em virtude das quotas leiteiras (fixadas pela UE), e da concorrência irlandesa, brasileira, polaca, o preço do leite desce para níveis assustadores e não compensa o trabalho dos agricultores que, assim, se encontram desesperados. O proteccionismo é proibido, os milhares que terão que deixar a agricultura a breve prazo serão ainda muitos, mesmo que ao longo das décadas o sector se tenha visto desertificado. Mas em França não tanto quanto a realidade ainda imporá. Frente a esta, os agricultores/produtores reúnem-se, os sindicatos estão dispostos a juntar-se, em manifestações que começam por procurar barrar a entrada de leite estrangeiro, mas, face à ineficácia que essa forma de luta manifesta, avançam (os agricultores) com armas. Sucede que Aymeric, o único amigo de Florent na faculdade (e fora dela), o rapaz bom com quem este ouvia discos quando estavam na universidade (as referências são Hendrix, Deep Purple, etc.; Florent não gosta, e acha de mau gosto, o heavy metal) puxa o cano para/contra si e suicida-se na manifestação – ele que viera do mundo da nobreza, o seu pai deixara-lhe uma herança imensa, vê-se a delapidar o património o que, a par do abandono de Cécile, com um pianista mundano, e sem possibilidades de ver a descendência, e de um divórcio caríssimo, o leva a terminar com a vida. Uma observação nada inócua, a este propósito (e com carácter político), aquela traçada pelo suicida, no paralelismo que estabelece entre si e o seu progenitor: "o que é terrível é que um homem que não fez praticamente nada de útil na vida (contentou-se em ir a casamentos, enterros, algumas caçadas, um copo de vez em quando no Jockey Club, algumas amantes, creio, nada de excessivo) ter ainda assim deixado o património intacto. Eu, que tento fazer alguma coisa, que me mato a trabalhar, que acordo todos os dias às cinco da manhã, que passo as noites a fazer contas…e o resultado, afinal, é que empobreci a família…"(pp.181-182). 
A polícia é violenta sobre a manifestação e nove agricultores morrem nesta [em uma das manifestações dos coletes amarelos, é certo, 24 pessoas haviam ficado cegas, e 283 feridas com gravidade na sequência das manifestações; na Europa, apenas em França, Grécia e Polónia é possível o uso irrestrito de balas de borracha para controlar manifestações].

6.O momento de maior suspense que a obra cria diz respeito a um plano que Florent concebe para recuperar o amor de Camille. Numa doença de amor, onde nem o ciúme pela relação que a mãe tem com o filho escapa (tal como não escapara ao narrador a competição sexual entre uma das suas companheiras e a mãe daquela, com cada uma a tentar tirar os parceiros à outra), o engenheiro agrónomo congemina na possibilidade de assassinar, à distância e sem deixar marcas, a criança de Camille. O amor doentio por Camille, ou a falta (a ausência) doentia dele (apesar de não gostar de psiquiatras, apesar de um que consultou a certa altura ser um "filho da puta", do Dr. Azote levará o conselho de recorrer a prostitutas porque "é preciso prazer para se viver" e, bem mais do que isso, a dizer-lhe que está a morrer de desgosto, a "expressão não é muito científica, mas tem que se dizer as coisas como elas são", pp.252-253), levam Florent a este limite e este abismo; mas ele será, no último instante, incapaz de premir o gatilho e ficará só como se adivinhara desde o início da trama. O personagem principal chega a viver num local sem internet, e do diálogo com o proprietário surge a noção que só quem está para morrer (para se suicidar, na verdade) escolhe viver sem aquela (em mais um olhar crítico sobre a sociedade em que vivemos) (p.221). Típico do tempo líquido, sem vinculações, mas delas necessitado, o viver constante em hotéis, e de hotel em hotel, por parte de Florent. Ele que adora álcool, também. Da maneira como você está deprimido, na Bélgica e na Holanda, em pedindo a eutanásia era imediatamente aceite, atira-lhe Azote. Mas Florent, em mais uma clara marca (ideológica, mundividencial) que pretende vincar, recusa-a.

7.Sobre a solidão ("era agora evidente que, além de viver sozinha, a Camille não tinha amantes, como não tinha muitos amigos; no decurso daquelas três semanas, não recebeu uma única visita. Como podia ela ter chegado a este ponto? Como podíamos ambos ter chegado a este ponto?, p.238), sobre uma certa lassidão, cansaço de viver, anomia social ("ao fim de dois minutos, percebi que falar me cansava ainda mais do que ouvir, eram as relações humanas em geral que me causavam dificuldade", p.106) sobre como o mundo vai mal e não há que lhe fazer, puro cinismo ("A ideia de que não se pode fazer grande coisa acerca de nada acabava por se impor tranquilamente [p.112] (…) O que é que podemos fazer, todos nós, ao que quer que seja? (…) as coisas não se iam compor, nada se ia arranjar e eu sabia-o bem", p.261), sobre o homem como ele é e não como devia ser (só que determinar como o homem é não se afigura tarefa excessivamente fácil, e a comoção com a "pureza" ou a "bondade do coração", por parte Florent, com alguns humanos, não deixa ter aquele excesso paradoxal que lhe dá um especial apuro; "é curiosa esta vontade de fazer um balanço, de nos persuadirmos, no momento último, de que vivemos; ou se calhar de que não o fizemos de todo, o contrário é que é assustador e estranho pensar em todos os homens e em todas as mulheres que nada têm para contar, que não imaginam outro destino senão o de se dissolverem num vago contínuo biológico e técnico (porque as cinzas são técnicas, mesmo quando só estão destinadas a servir de adubo, há que medir os índices de potássio e de nitrogénio), todos aqueles para quem a vida, em suma, se desenrolou sem incidentes exteriores, e que a deixam sem pensar nisso, como quem se despede de umas férias simplesmente correctas, sem fazer ideia de um destino posterior, com apenas uma vaga intuição de que seria preferível não ter nascido, enfim, falo da maior parte dos homens e das mulheres", p.152), sobre o declínio da civilização ("o terceiro milénio acabava de começar e era porventura, para o Ocidente qualificado de judaico-cristão, um milénio a mais, no mesmo sentido em que falamos de um combate a mais para os lutadores de boxe" (p.84); ou, sobre o inverno demográfico ocidental: "uma civilização morre, sem azáfama, sem perigos e sem dramas e com muito pouca carnificina, uma civilização morre unicamente por lassidão, por nojo de si mesma" (p.129) – eis os pontos que considero centrais no livro. Mas, ainda assim e em simultâneo, mesmo nesses personagens que vivem, digamos, em depressão controlada ("liberto de desejos, assim como de razões para viver (os dois termos não eram equivalentes? era um assunto difícil sobre o qual não tinha uma opinião bem formada), mantinha o desespero num nível aceitável, pode-se viver desesperado, e a maior parte das pessoas até vive assim, de vez em quando pergunta-se se pode conceder a si própria um naco de esperança, enfim, faz a pergunta antes de responder negativamente. No entanto, persiste e, aí, trata-se de um espectáculo comovente", p.190), que necessitam de ser medicados, que carecem de ter equilibrados os níveis de serotonina [título do livro, recordemos],  acerca dos quais se diz "já estava apenas vivo" (p.239), "consumido por dentro" (p.255), a obra é, igualmente, sobre como o amor redime tudo, embora um amor (no qual nunca pode faltar eros, para Florent, bem entendido; não se conceberia o amor sem tal dimensão) que, por isto e por aquilo, por cobardia, por mau juízo, pelas circunstâncias de uns e de outros, erros meus má fortuna amor ardente, não chegue a ter (o) lugar, pelo menos com a consistência e o tempo que justificariam (ainda mais) a vida. Se uma das personagens (feminina) da obra diz que já não estão reunidas as condições históricas, no Ocidente, que permitam a alguém ser feliz, trata-se de "uma quimera antiga"(p.84) – talvez Houellebecq não fale exclusivamente através de Florent e porventura se refira ao sentido da vida, que para Susan Wolf vem apenas com Deus, numa civilização que deixou de acreditar, mas especulamos ainda sobre a decifração de uma frase que a personagem não esclarece -, por outro lado Florent afirma, a certa altura, ter sabido o que era felicidade e não mais ter acesso a ela (p.128: "conheci a felicidade, sei o que é, posso falar dela com autoridade (…) [mas] Falta-nos um único ser e tudo fica despovoado"). A queda de Florent dá-se não apenas na falta de sexo – um tema omnipresente também neste livro; um livro pejado de descrições pornográficas, onde nem a zoofilia escapa; e há, ainda, o alemão pedófilo a anteceder páginas de reflexão sobre O amor em Veneza e a exaltação da juventude nos grandes vultos da cultura europeia do século XX (Mann e Proust) -, mas na falta de vontade em dar banho, no desejo de não ter/ser um corpo (p.76), no ficar em casa a ver tv o dia todo se possível (logo no início do enredo, o narrador-protagonista dá conta da satisfação em possuir o canal que transmite todas as grandes ligas de futebol do mundo, enumerando-as).
Se Houellebecq reage com sarcasmo a certas formulações religiosas (que se diriam mais pueris), ou a uma ausência de cuidado e um tratamento ideológico pelo religioso de dados acontecimentos (quando os seus pais morrem são dados, pelo cura, como exemplos de um amor perfeito, e Florent considera que era a altura de "fecharam a matraca"[sic] em vez de se apropriar daquela morte), todavia não deixa de assumir um discurso em diálogo com a tradição cristã e com uma racionalidade que supere o positivismo em alguns dos recortes mais expressivos dessa dialética com os níveis de ansiedade/stress/bornout interno/desespero/vazio/ausência de sentido/solidão que vão marcando as nossas sociedades…e todavia: "quanto a mim, nada parecia poder travar a minha marcha rumo à aniquilação. (…) Não esperava nada, estava plenamente consciente de que não tinha nada a esperar, a minha análise da situação parecia-me completa e certeira. Existem zonas da psique humana que continuam pouco conhecidas, porque foram pouco exploradas, porque felizmente poucas pessoas se encontraram numa situação em que tivessem de o fazer, e as que o fizeram ficaram em geral com insuficiente lucidez para produzir uma descrição aceitável. Essas zonas só podem ser exploradas pelo uso de fórmulas paradoxais e mesmo absurdas, entre as quais esperar além de toda a esperança é a única que de facto me ocorre. Não é semelhante à noite, é bem pior; e, sem ter conhecido pessoalmente esta experiência, tenho a impressão de que, quando mergulhamos na verdadeira noite, na noite polar, aquela que dura seis meses consecutivos, o conceito ou a lembrança do sol subsiste. Tinha entrada numa noite sem fim, mas, no fundo de mim, subsistia qualquer coisa, muito menos que uma esperança, chamemos-lhe uma incerteza. Podia-se igualmente dizer que, mesmo quando perdemos pessoalmente a partida, quando jogámos a última cartada, resta em alguns – não em todos, não em todos – a ideia de que algo nos céus vai tomar conta do jogo, vai decidir arbitrariamente distribuir outra mão, vai relançar os dados, e isto mesmo quando nunca sentimos, em momento algum da vida, a intervenção ou mesmo a presença de qualquer divindade, mesmo quando temos consciência de não ter particularmente merecido a intervenção de uma divindade favorável, e mesmo quando nos damos conta, considerando a acumulação de erros e de faltas que constituem a nossa vida, de que a merecemos menos que toda a gente" (pp.244-245). Ou, mais expressamente ainda: "Deus, na verdade, ocupa-se de nós, pensa em nós a cada instante, e por vezes dá-nos instruções muito precisas. Estes arrebatamentos de amor que nos apertam o peito até nos deixarem sem ar, estas iluminações, estes êxtases, inexplicáveis do ponto de vista da nossa natureza biológica, da nossa condição de simples primatas, são sinais extremamente claros. 
E hoje percebo o ponto de vista de Cristo, o seu reiterado desespero ante o endurecimento dos corações: dispõem de todos os sinais e não os têm em consideração. É mesmo necessário dar a minha vida por estes miseráveis, ainda por cima? É necessário ser explícito a esse ponto? Dir-se-ia que sim"(p.279).

A vida, bem vistas as coisas, vale por três, quatro relações com os outros; nelas, há tanto, dom e gratuitidade que não se mereceu; um excesso amoroso grita-nos dentro delas, mas cegos recusamos, ou não mantemos esse amor. E andamos em busca de sentido, errantes e apartados, deambulando com ajuda de antidepressivos, stressados e interiormente corroídos. E, no entanto, lá do/no fundo do fundo algo nos grita, mas espantosamente, com sklerocardia, mantemo-nos recalcitrantes (à espera de que prova?).