Ao acompanhar a enorme cacofonia que se estabeleceu em torno da vacinação contra a covid-19, tenho-me lembrado muitas vezes do conto tradicional dito para crianças, mas com fortes lições para todos, que descreve uma caminhada de um rapaz, um velho e um burro e o linguajar crítico em relação a todas as formas em que o trio se combinou na deslocação, ora porque ia o rapaz montado e o velho a pé, ou o velho montado e o rapaz a penates ou os dois montados sobrecarregando o jumento. Nas últimas semanas tenho recomendado a muitos amigos a releitura desse breve, mas instrutivo conto. Nesta crónica explico porque também o recomendo aos meus leitores.
Vivemos num mundo complexo, em que felizmente os saberes são cada vez mais robustos e as perspetivas de análise mais diversas e especializadas. Na análise social, a grelha e a perspetiva de observação fazem toda a diferença. A apreciação de uma decisão deve ter em conta os seus pressupostos e objetivos. Quando esses pressupostos se alteram também as conclusões variam. É por isso que em processos complexos, toda a informação e todo o conhecimento relevantes devem ser tidos em conta, mas a decisão final é necessariamente política, embora tecnicamente fundamentada.
Num tempo em que “o rapaz, o velho e o burro” são seguidos passo a passo, milímetro a milímetro pelas mais diversas plataformas e redes de informação, relato ou interação, temas como um processo de vacinação que pode definir a fronteira entre a vida e a morte são objeto das mais díspares abordagens. Interajo quase diariamente com médicos, economistas, psicólogos, sociólogos, engenheiros e arquitetos, politólogos e especialistas das mais diversas áreas do saber. Aprendo imenso com as suas abordagens, mas nem sempre sou bem-sucedido quando os convido a ajudarem-me a compor o puzzle porque todos tendem a achar que a sua visão deve ser o centro a partir do qual tudo se encaixa.
Nada de anormal. Apenas uma dificuldade imensa para quem tem que decidir conjugando todas as variáveis e visando otimizar as respostas. Dizem as crónicas sociais que António Costa é especialista em construir complexos puzzles e que esse é um dos seus hobbies preferidos. Essa sua competência, já também demonstrada no exercício da gestão política em diversos patamares, ser-lhe-á agora mais útil do que nunca.
Em Portugal, as autoridades decidiram iniciar o processo de vacinação pelos profissionais de saúde na linha da frente, com alguns responsáveis de serviços chave a darem o exemplo para ganhar a confiança das populações para uma toma massiva. Não faltaram os aplausos entusiásticos e as críticas virulentas. Mais consensual foi a prioridade aos portadores de outras doenças de risco, aos residentes de lares e aos maiores de 80 anos, não faltando, contudo, o confronto saudável de muitas estratégias alternativas de como fazer.
Ultrapassada a montanha russa relativa ao eventual risco colateral de uma das vacinas, as autoridades optaram por dar prioridade às escolas e aos professores. Caiu de novo o “Carmo e a Trindade”, uns fervorosamente a favor e outros desesperadamente contra. Será sempre assim. O que importa é que os viandantes possam chegar no maior número possível ao final do caminho, porque muitos outros caminhos teremos para trilhar.
Eurodeputado do PS