Os rios da minha aldeia


Costumo dizer que o Sado é uma metáfora. Podia ser o Ganges. Afinal, se o Ganges passa na Rua dos Douradores e até o Esteves sem metafísica pode molhar nele os pés, o Sado também pode ser o Tejo. Só não é o Tejo porque Alberto Caeiro me ensinou que o Tejo é mais belo…


Costumo dizer que o Sado é uma metáfora. Podia ser o Ganges. Afinal, se o Ganges passa na Rua dos Douradores e até o Esteves sem metafísica pode molhar nele os pés, o Sado também pode ser o Tejo. Só não é o Tejo porque Alberto Caeiro me ensinou que o Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. Lisboa também é uma das minhas aldeias e eu tenho muitas aldeias e muitos rios e o Sado junta, nesta curva onde moro, com uma varanda debruçada sobre ele, todas as aldeias e todos os rios. OTejo podia ser o Nilo que eu subi até Abu Simbel em busca deRamsés II, como também podia ser o Mekong na placidez de Luang Prabang onde, pelas persianas, no pino mais alto do sol do meio-dia, eu ouvia a lengalenga dos meninos da escola ao lado repetirem obedientemente as lições da professora que lhes ensinava o lao, a língua dos monossílabos. Eu bem sei que o rio da minha aldeia, em Águeda, foi a minha porta para o mundo. Por causa dele fui atrás do Irrawaddy e do Bramahputra e estive naquele lugar onde o Amazonas se alarga com a junção do Rio Negro e do Solimões e há um risco sobre as águas, separando as cinzentas e as negras, como se fossem a água e o azeite. O rio da minha aldeia tinha o Fojo e as Lavadeiras, onde as mulheres ficavam imersas até à cintura esfregando lençóis e fronhas com sabão azul-e-branco, deixando uma espuma que vinha até à margem de areia clara onde, depois, ficavam a secar, ou a corar como era de dizer-se. O rio da minha aldeia tinha o Souto do Rio e o Alfusqueiro, que era um rio que alimentava o rio da minha aldeia. Pelo Sado vai-se para o Mundo. Sigam sempre a direito até à foz, depois virem à esquerda e contornem o Bojador. Não há como enganar. A partir daí estão quase na Índia, onde fica a minha aldeia sem tempo. Na Índia, o rio da minha aldeia é o mar.

Os rios da minha aldeia


Costumo dizer que o Sado é uma metáfora. Podia ser o Ganges. Afinal, se o Ganges passa na Rua dos Douradores e até o Esteves sem metafísica pode molhar nele os pés, o Sado também pode ser o Tejo. Só não é o Tejo porque Alberto Caeiro me ensinou que o Tejo é mais belo…


Costumo dizer que o Sado é uma metáfora. Podia ser o Ganges. Afinal, se o Ganges passa na Rua dos Douradores e até o Esteves sem metafísica pode molhar nele os pés, o Sado também pode ser o Tejo. Só não é o Tejo porque Alberto Caeiro me ensinou que o Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. Lisboa também é uma das minhas aldeias e eu tenho muitas aldeias e muitos rios e o Sado junta, nesta curva onde moro, com uma varanda debruçada sobre ele, todas as aldeias e todos os rios. OTejo podia ser o Nilo que eu subi até Abu Simbel em busca deRamsés II, como também podia ser o Mekong na placidez de Luang Prabang onde, pelas persianas, no pino mais alto do sol do meio-dia, eu ouvia a lengalenga dos meninos da escola ao lado repetirem obedientemente as lições da professora que lhes ensinava o lao, a língua dos monossílabos. Eu bem sei que o rio da minha aldeia, em Águeda, foi a minha porta para o mundo. Por causa dele fui atrás do Irrawaddy e do Bramahputra e estive naquele lugar onde o Amazonas se alarga com a junção do Rio Negro e do Solimões e há um risco sobre as águas, separando as cinzentas e as negras, como se fossem a água e o azeite. O rio da minha aldeia tinha o Fojo e as Lavadeiras, onde as mulheres ficavam imersas até à cintura esfregando lençóis e fronhas com sabão azul-e-branco, deixando uma espuma que vinha até à margem de areia clara onde, depois, ficavam a secar, ou a corar como era de dizer-se. O rio da minha aldeia tinha o Souto do Rio e o Alfusqueiro, que era um rio que alimentava o rio da minha aldeia. Pelo Sado vai-se para o Mundo. Sigam sempre a direito até à foz, depois virem à esquerda e contornem o Bojador. Não há como enganar. A partir daí estão quase na Índia, onde fica a minha aldeia sem tempo. Na Índia, o rio da minha aldeia é o mar.