Levantava-se pelas 6h e preparava-se para assistir às aulas, que começavam pelas 8h. Demorava uma hora a chegar à escola e somente regressava a casa volvidas oito horas. Quando tinha dinheiro, recorria aos transportes públicos “que não são seguros”, mas, habitualmente, fazia o trajeto a pé.
De volta ao lar, com “um corpo e uma mente exaustos”, por nunca ter “boa comida, bons transportes ou atividades de lazer” que a mantivessem motivada, fazia os trabalhos de casa entre as 20h e as 22h. Isto quando não tinha “muitas tarefas domésticas” para completar, pois, nesse caso, teria de estudar até às 23h.
Era este o quotidiano de Suborna Mustofa, atualmente com 18 anos, que nunca fazia refeições intermédias porque a família – constituída pelos pais, três filhos e ela – tinha apenas capacidade financeira para lhe proporcionar as principais.
“Não havia nada de especial na minha vida, mas mantinha uma coisa em mente: tinha de ser diferente dos outros. Foquei-me nisso”, começa por explicar ao i, adiantando que, apesar de querer ter hobbies como a natação, o ciclismo, fazer piqueniques ou passear com a família e os amigos, no Bangladesh, tal não era possível. “Tentava manter-me forte para seguir em frente. Estava privada de tudo, mas nunca perdi a esperança ou deixei de sonhar”, desabafa a rapariga que, hoje, é estudante de Gestão de Negócios Internacionais, no Instituto Politécnico de Bragança.
“O meu país é completamente corrupto” O Bangladesh tem uma das taxas mais altas de casamentos infantis do mundo e, de acordo com a UNICEF, no seu site oficial, “a prática do casamento infantil reflete as normas enraizadas na sociedade e a desigualdade que existe entre homens e mulheres, visto que estas últimas costumam ser vistas como um fardo financeiro”.
A pobreza e a baixa escolaridade são fatores decisivos, mas as evidências sugerem que o casamento infantil é praticado em todos os estratos sociais, sendo que 51 por cento das mulheres do Bangladesh que se encontram agora na casa dos 20 anos casaram-se antes de atingirem a maioridade e quase 18% tinha menos de 15 anos.
É sabido que, nos países do Sul da Ásia, os pais exercem grande influência no casamento dos filhos e as meninas geralmente têm o encargo de manter a honra da sua família. Assim, quando estas atingem a puberdade, os pais preocupam-se com a proteção da sua castidade. Aquelas que optam por iniciar a atividade sexual antes do casamento são encaradas como ameaça às normas sociais e consideradas “manchadas”.
Somente em agosto de 2019 o Supremo Tribunal do Bangladesh decidiu que a pergunta sobre a virgindade, na documentação a preencher no momento de contrair matrimónio, deve ser substituída por outra sobre se já foi casada.
Todavia, muitos adolescentes casados vivenciam e aceitam a violência física e sexual. A título de exemplo, 33% das adolescentes inquiridas pela UNICEF acreditam que um marido tem razões para bater na esposa.
“O meu país é completamente corrupto. Temos corrupção em todos os setores. Não temos liberdade de expressão. As pessoas muito pobres não têm nada. Os nossos sonhos não valem nada”, conta a jovem que chegou a Portugal a 28 de fevereiro de 2020 através do apoio de um patrono, Mário Marques.
“É claro que a minha vida teria sido muito miserável se o Mário e o resto das pessoas não me tivessem ajudado”, reconhece. “Sem elas do meu lado, teria casado, tido filhos e trabalhado numa loja de roupa porque a minha família nunca poderia financiar a minha educação e a vida que tenho aqui”, remata.
“Vejo-a como uma filha” Em 2018, em conversa com uma amiga que se dedica a causas humanitárias, Mário percebeu que esta estava a tentar juntar dinheiro para ir prestar auxílio num campo de refugiados. “Na altura, comovido, dei-lhe uma ajuda. Depois, ela contactou-me e disse-me que já não poderia fazer a viagem e que fazia sentido devolver o dinheiro. E eu disse que de certeza que ela teria um bom destino para o valor”, recorda o homem residente no Montijo.
Já em abril de 2019, a amiga contou-lhe que conhecia alguns rapazes do Bangladesh que tinham ido estudar para o Instituto Politécnico de Bragança e que um deles “estava frágil e a passar por grandes dificuldades”. Assim, o pai de três filhos aceitou aplicar o dinheiro na educação do jovem, mas quis saber mais sobre ele.
“Tinha chegado em setembro de 2018. Comecei a tentar conhecer a situação dele, o que aconteceu, porque é que ele estava ali”, diz, confessando que se apercebeu de que o rapaz havia sido ajudado pela fundação Maria Cristina ”que pega nestes miúdos que vivem em autênticos barros de lata e dá-lhes a oportunidade de ter a escolaridade completa” sendo que, a partir do 12.º ano, “manda-os para Portugal com a esperança de que apareçam patrocinadores”.
Quando Mário conheceu Rubel, “ele já tinha muitas rendas em atraso do quarto, tal como propinas e estava numa situação em que mal conseguia fazer três refeições diárias”. Deste modo, constatando que não teria dinheiro suficiente para apoiar o estudante em todas as áreas, asseverou-lhe que, pelo menos, fome não passaria naquilo que dependesse de si.
“Fiz mais ou menos os cálculos e passei a mandar-lhe o montante todos os meses. Quis saber tudo ao pormenor. De abril a dezembro de 2019, falámos, ajudei-o e ele veio ter comigo ao Montijo”, narra, admitindo que, apesar de Rubel ir buscar roupa à Cáritas, oferecia-lhe um par de calças ou de ténis sempre que conseguia.
“Ele nunca me pedia nada, eu tinha de escrutiná-lo. Em dezembro, apareceu um patrocinador que conhecia muito bem a fundação e tinha uma relação de proximidade com o Rubel e decidiu suportar todas as despesas dele”, expõe Mário, tendo gravado as palavras que o jovem proferiu.
“Nessa altura, agradeceu-me por tudo e disse que deixaria de fazer sentido receber o dinheiro. Mas fez-me um pedido: disse que tinha a irmã no Bangladesh, a acabar o 12.º ano, e que as oportunidades eram ainda menores para as raparigas. Portanto, queria trazê-la para cá”, evoca. “Eu admiti que não tinha ideia de ir além dele, mas se já o considerava meu familiar, a irmã dele também o era”.
Desta forma, Mário pediu a Rubel que o colocasse em contacto com a menina e este criou um grupo com o título “Family”, no Messenger, integrando no mesmo Suborna que, à época, estava no Dubai a fazer um estágio de fim de curso, numa clínica dentária.
“Como estava com 17 anos, e pela lei do país é proibido pessoas com menos de 18 anos terem rendimentos, ficava numa casa da fundação Maria Cristina, mas tudo o resto era suportado por caridade”, explicita, sublinhando que já tinha sido feito junto do Instituto Politécnico de Bragança um pedido para o ingresso de Suborna na instituição.
“Entretanto, foi criada uma espécie de associação de estudantes para apoiar burocraticamente os miúdos do Bangladesh e o Rubel, em cooperação com esta, tratou dos papéis para que ela fosse aceite”, o que aconteceu rapidamente, pois Mário falou com Suborna, pela primeira vez, a 6 de janeiro e a aceitação na faculdade deu-se dois dias depois.
O princípio da mudança “Ela voltou para o Bangladesh e, a partir daí, fiz um post no Facebook com a foto e a história dela e pedi apoio para ver se alguém se juntaria a mim”, desvenda o patrono que, nesse mesmo dia, obteve o apoio de uma colega de trabalho. “Foram surgindo mais pessoas dispostas a ajudar e peguei numa conta minha que não era usada e juntei dinheiro para trazer a Suborna para Portugal”, salienta.
No dia 13 de janeiro, foi pedido o registo criminal, assim como o visto, para que Suborna pudesse viajar para a Índia. Volvidos três dias, conseguiu o segundo. No dia 21, o primeiro. Cinco dias depois, tinha em mãos o certificado de habilitações e, no dia 27, viajou de Daca até Nova Deli, tendo sido acompanhada pela mãe devido ao facto de, àquela data, ser menor de idade.
“Estava longe de imaginar que conseguiríamos isto em tempo recorde. O voo foi Bangladesh-Lisboa, fez escala no Qatar. Demorou um dia e meio”, revela Mário com emoção, confessando que esteve sempre alerta. “Quando aterrou no Qatar mandou mensagem a dizer onde estava” e, horas depois, juntamente com Rubel, aguardava a chegada de Suborna no aeroporto de Lisboa.
Pijamas e pratos Naquele fim de semana, a família Marques organizou um jantar com todas as pessoas que patrocinaram o projeto para que conhecessem Suborna pessoalmente. Unidos, compraram-lhe tudo aquilo de que necessitaria para começar uma nova vida em Bragança, desde pijamas, passando por roupas quentes, utensílios de cozinha, pratos, copos e até lençóis para a cama.
“No dia 1 de março, fomos levá-la a Bragança, ver o quarto onde ia ficar, confirmar se estava tudo bem e, a partir daí, continuámos a ajudar”, declara, orgulhando-se de ainda não ter falhado com nenhuma despesa. “O maior incentivo é quando aparece alguém que nunca nos viu, mas acredita e ajuda”, clarifica, dando o exemplo de uma professora universitária do Porto que, desde o fim do ano passado, oferece a Suborna, mensalmente, dois vouchers de supermercado, no valor de 50 euros cada.
“Temos um orçamento mensal dos gastos previstos, sabemos o que é fixo por mês”, refere, contando que, naquilo que diz respeito à alimentação, os patronos definiram o valor de 220 euros. “O meu maior trabalho é tentar sempre divulgar, arranjar mais patrocínios, porque quanto mais pessoas ajudarem, o esforço financeiro de cada um pode ser menor”, nota, observando que a única coisa que pede a Suborna é que obtenha boas classificações na licenciatura. “Ela não tem de se preocupar, eu trato de tudo o resto”, assegura.
“Ela tem 18 anos, mas é só número, ela é uma menina pequena”, percebe, lembrando que a ensinou a andar de bicicleta com os filhos. Algo que não é de estranhar num país em que, segundo dados da UNICEF, existem 32 milhões de adolescentes que perfazem 21% da população e, desde cedo, lidam com responsabilidades adicionais, lutando pela sua independência, sendo que o contexto cultural do país não encoraja as camadas mais jovens a expressar os seus pontos de vista, a fazerem-se ouvir nem a questionar os adultos acerca das questões que afetam as suas vidas.
“O que ela vê como desejo é licenciar-se para poder ter um futuro melhor e ajudar a família, até porque já estava a ser pressionada para casar”, afirma Mário, reconhecendo que “não havia nenhum pretendente definido porque os pais tiveram a mentalidade mais progressiva de tentar que alguém a ajudasse”.
Por terem enfrentado dificuldades, tanto Suborna como Rubel, assim como Shah, o irmão de ambos que aterrou em Lisboa em dezembro, não pedem nada a ninguém. “Há duas semanas, tivemos de lhe mandar um computador portátil. Fiz uma pesquisa, apresentei várias opções ao grupo e todos aceitaram investir. Mas, como estes miúdos têm uma cultura de não colocar demasiado peso nos ombros dos outros, o Rubel é que me disse que o computador que ela tinha já não estava a funcionar”, menciona, ilustrando o pensamento de quem é oriundo daquele que já foi considerado o país menos desenvolvido do mundo.
“Estas pessoas são como anjos para mim”, defende Suborna, não esquecendo, porém, do quão desafiante foi adaptar-se ao novo ambiente e à cultura. “Quando cheguei, estávamos no inverno e fazia demasiado frio para mim. No Bangladesh, está sempre calor. Por isso, fiquei doente durante uns dias”, declara.
Todavia, o entusiasmo sentido por iniciar a licenciatura levou a melhor e fez o segundo semestre do ano letivo passado com uma boa média. “Também encontrei colegas que se mostraram muito cooperantes”, argumenta a apaixonada por finanças e gestão que ainda não esqueceu o sonho de ser comissária de bordo – “desde a minha infância, sempre quis viajar e explorar sítios diferentes, mas sabia que, se já era difícil para a minha família dar-me uma refeição por dia, seria impossível realizar esse sonho” –, ainda que tornar-se bancária se afigure como uma opção mais viável. Seguindo a excelência, em novembro, inscreveu-se a três unidades curriculares extra, relativas ao ano letivo seguinte, para não perder tempo e aprender mais.
“Numa frase apenas, diria que, todos os dias, estou a sonhar devido ao apoio extraordinário que recebo destas 20 pessoas. Elas fazem aquilo que os meus pais não podem. Portanto, a cada segundo de vida que tenho, sinto-me grata por saber que, no meu país, existem pessoas como eu que não estão a ter oportunidades. Sou abençoada”, finaliza a jovem.
“Criei uma pasta com as faturas, tudo o que é documentação importante dela, para que os patrocinadores verifiquem aquilo em que o dinheiro é aplicado”, frisa o fundador da página do Facebook “Suborna – Um projeto de educação”.
“Eu tenho três filhos, um com cinco, um com 12 e um com 22 anos. Eles adoram a miúda. Quando ela está cá, desce à idade do mais pequenino. Vejo-a como uma filha que está em Bragança e, por isso, quero sempre saber se está bem”, conclui.