Fruto, porventura, da pandemia, da crise económica e social por ela originada e da perplexidade e indefinição políticas que estas geraram em largos sectores da sociedade, vem-se assistindo, em Portugal, a um maior e algo desvirtuado protagonismo político da parte de associações profissionais de vários tipos, que não se enquadram, por norma, nos tradicionais movimentos sindicais.
Algumas dessas associações assumem a forma jurídica de Ordens – cuja função deveria ser, sobretudo, a de autorregulação profissional de setores liberais – outras, embora revestindo o formato de sindicatos, agem num plano institucional das funções constitucionais do Estado e reservam-se, também, mesmo que informalmente, um estatuto diferenciado.
O que deste novo protagonismo resulta, por vezes, é a necessidade de alguns interesses muito específicos e representados apenas por parte dos associados de tais agremiações encontrarem uma expressão que, diretamente, não vêm assumida, hoje, pelas forças políticas que, tradicionalmente, os representavam.
A distinção entre a representação de pretensões profissionais e técnico-profissionais destes setores e a expressão de posicionamentos políticos de alguns dos seus ativistas mais empenhados e dos dirigentes que estes conseguiram escolher deixou, assim, de ser clara para a opinião pública.
A sua isenção e autonomia crítica perderam-se.
Em muitos casos, os porta-vozes de tais associações, e os posicionamentos públicos que adotam, alinham, visivelmente, com alguns programas e estratégias políticas, de que parecem ser, cada vez mais, somente, instrumentos privilegiados de agitação prévia.
Esta situação conduz, necessariamente, a acusações de instrumentalização política das tomadas de posição de tais associações por parte de outras forças políticas, que, por elas, se sentem visadas, o que só deslegitima globalmente – interna e externamente – a intervenção de tais associações.
Vão mais de vinte anos, disse, numa assembleia-geral de uma associação de magistrados europeus que, então, se reuniu em Lisboa e referindo-me, em concreto, às correntes de sindicalismo judiciário existentes na Europa, que a expressão associativa e sindical de corpos profissionais com funções institucionais de natureza constitucional tinha a vantagem de identificar os seus associados com os anseios mais gerais dos povos em que se inseriam, o que só poderia ser benéfico para a democratização da justiça e dos respetivos aparelhos judiciários.
Contribuía, portanto, para o processo democrático que envolvia toda a sociedade.
Alertei, todavia, para que, desinseridos dessa dinâmica social, afastados muitos dos ideais e laços com os movimentos sociais e culturais que inspiraram a sua fundação, tais associações poderiam, pelo contrário, tender para um elitismo social, para uma defesa corporativa e socialmente incompreendida do estatuto dos seus associados, e poderiam ser, por isso, facilmente isolados e instrumentalizados pelas tendências mais conservadoras e retrógradas da sociedade.
Se isso acontecesse, acrescentei então, seria, doravante, mais difícil a tais associações fazerem valer junto da sociedade a razão de ser dos anseios e as propostas coerentes e justas que, em muitos casos, de facto, exprimem.
Isto não só quando decidissem atuar na defesa dos estatutos socioprofissionais dos seus associados, como, também, quando promovessem soluções técnico-legislativas absolutamente necessárias ao desempenho das funções constitucionais que estão cometidas aos corpos profissionais que representam.
Isolados da sociedade e dos seus anseios mais populares – que não populistas – tais Ordens, associações e sindicatos tendem, com efeito, a perder o apoio e legitimidade social que lhes permitiu, durante muito tempo, serem ouvidas com respeito e atenção por todos: órgãos democráticos dos diferentes governos, representantes políticos diversos e meios de comunicação social de variadas orientações.
Perdem, assim, o amparo popular alargado, necessário a fazer acreditar na opinião pública os seus pontos de vista: isolados da sociedade, carecem de legitimidade própria fora do círculo restrito de alguns dos seus associados e desbaratam a pouca influência popular autónoma que alguma vez conseguiram alcançar.
A verdade é que, hoje, muita da força que advinha a muitas dessas associações da maior proximidade aos anseios dos setores mais dinâmicos da sociedade se foi perdendo, e perdendo se foi, também, a sua capacidade para fazer vingar aspetos fundamentais dos estatutos socioprofissionais dos corpos por elas representados.
Perdeu-se, ainda, também, muita da credibilidade dos pontos de vista técnico-legislativos que foram exprimindo e que – muitas vezes com razão – deveriam ter servido para aprofundar e influenciar positivamente a democratização da legislação e da organização que dá operacionalidade às suas funções.
Perdeu-se, ainda, por consequência, a capacidade mobilizadora interna que tais associações antes demonstravam.
Em alguns casos, o papel desempenhado por este tipo de associações – Ordens, associações e sindicatos de sectores institucionais com funções constitucionais – passou, por isso, a servir, sobretudo, de ariete nas guerras político-partidárias que, por seu intermédio, são travadas e difundidas mediaticamente na sociedade.
E isso deslegitimou-as pública e politicamente, tanto no plano interno como externo.
Reencontrar um papel autónomo, isento e crítico, mas, ao mesmo tempo, institucionalmente colaborativo para a imprescindível intervenção pública de muitas dessas associações profissionais – um papel que tiveram e que podem voltar a ter – é, todavia, indispensável para a resolução justa dos graves problemas que a sociedade demonstrou ter e que foram destapados, mais visivelmente, pela crise sanitária.
Se isso não acontecer, são, igualmente, os próprios e específicos interesses dos corpos profissionais representados por tais associações que ficarão a perder.