Os problemas do foro psiquiátrico ainda são um tabu em Portugal, a prova disso é que todos aqueles que aceitaram participar neste artigo pediram para não ser identificados e, por isso, os nomes que aqui se encontram são fictícios.
“Fiquei ‘bonita’ e ‘popular’. Acho que isso me deu uma legitimidade, ainda que inconsciente, para continuar a fazer aquilo que estava a fazer”, começa por contar Luísa ao i, lembrando os distúrbios alimentares que acompanharam durante a adolescência. A jovem alentejana, que tem hoje 22 anos, sente agora que está curada, no entanto a bulimia foi um problema que a atormentou durante vários anos.
Em 2019, registaram-se em Portugal 38 óbitos por lesões autoprovocadas de jovens com menos de 25 anos, todos entre os 15 e 24 anos. Em anos anteriores já houve óbitos em crianças mais novas. A saúde mental infantil é ainda um tema difícil de decifrar. Quando se trata de crianças com menos de doze anos, é necessário estar atento aos comportamentos visto que podem não se expressar verbalmente e fazê-lo através de “alterações no padrão de jogo, do desenho, alteração do comportamento com retirada, isolamento ou outras vezes maior agressividade, alterações dos padrões de sono ou alimentares”, explica a pedopsiquiatra Sara Melo. A especialista indica que estes comportamentos “são a expressão de desconforto emocional das crianças mais pequenas”. Para a especialista, apesar de “haver cada vez mais informação e campanhas de sensibilização para a importância da saúde mental e o risco de não se procurar ajuda”, o adoecer psiquiátrico ainda é muitas vezes associado à “fraqueza e à falta de vontade”, lembrando que ainda se ouve muitas vezes dizer “não deprimo porque não tenho tempo para isso…”, como se a doença mental se pudesse comparar a um “capricho”.
E estas são histórias de quem o sentiu na pele. Afonso tem ansiedade desde que se lembra. Quando era pequeno não conseguia dormir sem a mãe porque “tinha medo de morrer, de adormecer e não acordar mais”. Só começou a considerar isso um problema em idade escolar quando se apercebeu de “que os outros miúdos não estavam constantemente assustados com tudo” como acontecia com ele.
Também António se debateu com a sua saúde mental durante a adolescência. Com 15 anos, teve um episódio psicótico em que perdeu “o total controlo da realidade”, mas já há mais de dois que tinha depressão.
“Porque é que comeste tanto?” Luísa lembra-se de “ter sempre sido uma criança gordinha”. No entanto, só quando entrou para escola é que começou a sentir-se incomodada com a situação. “Do primeiro até ao sexto ano era gozada por isso, não posso dizer que fosse mesmo ‘bullying’ porque não era todos os dias nem nada muito agressivo, mas sentia que os miúdos falavam e mandavam bocas de vez em quando”, relembra a jovem. A situação piorou quando Luísa entrou na adolescência e começou “a querer namorar e ter amigos”. A partir do sétimo ano, entrou numa dieta restrita: “Pesava a comida que comia para contar as calorias e desci imenso de peso”.
A diferença foi notada pela própria e também pelos colegas. Luísa admite que o novo corpo fez com que se tornasse “bonita” e “popular” e que lhe deu “uma legitimidade, ainda que inconsciente, para continuar a “fazer aquilo que estava a fazer”. A jovem apercebeu-se de que estava a ser tratada de maneira diferente e de que “as pessoas finalmente” gostavam dela.
Quando deixou de ser vista como “a miúda gordinha” e passou a ser admirada pelo seu corpo magro, Luísa parou com a dieta que estava a fazer. No entanto o problema não acabou por ali: “Sempre tive muitas oscilações de peso”, explica a jovem, “então o que acontecia comigo era, quando eu voltava a engordar, começava a vomitar”. Este comportamento fez com que se auto-diagnostica-se com bulimia.
A seguir às refeições, a rotina de Luísa levava-a à casa de banho, onde se forçava a deitar fora aquilo que há pouco tinha ingerido. “Eu comia muito sem sequer pensar e quando acabava de comer ficava com nojo de mim. Pensava “ai que nojo, porque é que comeste tanto?” e culpava-me por comer”, desabafa. O que fazia deixou de ser por se sentir “gorda”, como acontecia inicialmente, e passou a ser impulsionado pela repulsa que sentia de si própria.
Mais tarde, quando já se sentia melhor, voltou a ter recaídas, desta vez, “provocadas” por outros: “Houve uma altura em que eu já não vomitava há uns meses e até me sentia bem comigo mesma e uma das vezes uma professora minha da primária, que eu já não via há muito tempo, passou por mim e disse ‘Ah mas estás tão mais gordinha’. Passado alguns meses foi uma amiga da minha mãe: vira-se para mim e diz ‘Ah mas estás tão gorda’ e eu tenho consciência de que nunca estive assim tão gorda a ponto de me prejudicar a saúde”, conta Luísa.
Na altura em que a amiga da mãe comentou a sua aparência, a jovem andava no segundo ano de faculdade. “Percebi que já não comia a sério aí há umas três semanas”, conta ao i, acrescentando que estudava “e as coisas não entravam na cabeça”. Depois de compreender o real impacto que não comer estava a ter na sua vida, a alentejana admite que começou a tratar-se de maneira diferente.
Os pais nunca repararam e, por isso, Luísa nunca teve acompanhamento psiquiátrico. A jovem inventava desculpas para a perda de peso e a própria acreditava que a família atribuía o novo corpo “a um aumento do exercício físico”.
De acordo com a psicóloga Catarina Lucas, esta é uma situação bastante comum: “As jovens com distúrbios alimentares são muito astutas a esconder a sua relação com os alimentos e a forma como gerem o peso”. No caso da bulimia em específico, a especialista explica que “não chega a existir uma perda de peso efetiva”, visto que “há sempre ingestão de alimentos e mesmo com a indução do vómito a expulsão nunca é total” e que, por isso mesmo, “as pessoas à volta têm mais dificuldade em identificar o problema já que habitualmente as pessoas apercebem-se quando há perda de peso abrupta e significativa”.
Durante algum tempo, Luísa achou que estava sozinha nesta sua luta com o peso e a aparência mas foi quando começou a contar aquilo por que passou que se apercebeu de que também algumas das suas amigas tinham passado por isso.
“Era precavido em excesso” Afonso só se conhece enquanto pessoa ansiosa. Quando era pequeno não era capaz de dormir sem mãe porque “tinha medo de adormecer e nunca mais acordar”. Tal como aconteceu com Luísa, apenas quando entrou para a escola é que se começou a sentir incomodado. “Apercebi-me (da ansiedade) quando os outros miúdos não estavam constantemente assustados com tudo como eu”. O estudante de Direito assume que “tinha muito medo de tudo” e “sempre que acontecia alguma coisa fugia”. Quando se viu confrontado com os comportamentos das crianças da mesma idade, Afonso sentiu que “era precavido em excesso”.
Ao contrário do que aconteceu com Luísa, Afonso foi desde cedo acompanhado por psicólogos. Por volta dos sete anos de idade, os pais começaram a levá-lo a consultas e quando entrou na adolescência já tinha o problema “relativamente controlado”.
Para lidar com a situação, o jovem começou a escrever, hábito que mantém até hoje. “Escrever ajudava muito”, explica, acrescentando que sentia que a ansiedade atacava “quando estava mais distraído” e que por isso, a partir daí, começou a fazer um esforço por passar mais tempo ocupado.
De acordo com a pedopsiquiatra Sara Melo, é comum que as crianças com distúrbios psiquiátrico vejam uma alteração no seu rendimento escolar, no desempenho social e no relacionamento intrafamiliar. Para Afonso, a área mais afetada foi a social, sendo que durante o ensino preparatório “continuava a ter 5 a todas as disciplinas”, diz. No entanto, o lado afetivo viu-se mais afetado, nomeadamente as relações amorosas visto que o jovem tinha medo “tanto de não conseguir falar como de não conseguir manter uma relação”. Ao entrar no ensino secundário, o rapaz viu a sua situação melhorar mas com a entrada na faculdade, a ansiedade voltou a fazer parte da sua rotina.
Hoje com 23 anos, Afonso diz ter tido “sorte” por nunca lhe ter acontecido nada de grave, mas confessa que durante muito tempo viveu “num medo constante”, fazendo com que tentasse estar sempre ativo para “não ter aqueles pensamentos”. Ainda tem ataques de pânico – com menos frequência do que quando era criança – mas agora sabe lidar com eles.
“Meti-me no meio da estrada enquanto os carros passavam” António começou a ter um humor depressivo aos 13 anos. Por um lado, diz que ao início, não encontrava “nenhum motivo em específico” para isso acontecer, por outro admite que “certos episódios associados ao bullying” possam ter levado a isso.
A psicóloga Catarina Lucas explica que “os transtornos psíquicos não têm de ter uma causa-efeito”, sendo que a pedopsiquiatra Sara Melo adianta que podem ter que ver com “uma vulnerabilidade genética ou hereditária” assim como com “as questões do meio”. E aqui entram as questões do bullying mas também “o receio ou desilusão com o desempenho escolar, a exposição e relação social sobretudo com os pares, as questões familiares (famílias desestruturadas, separações, alterações importantes na rotina familiar…) e, obviamente, situações limite como são as situações de negligência, maus tratos e abusos”.
António começou por fazer “psicoterapia mas rapidamente isso passou para a toma de medicamentos e apoio psiquiátrico”. Inicialmente os pais começaram por “subestimar os problemas” mas depois entenderam que o melhor era que o filho tivesse acompanhamento. “Não conseguia sair da cama, saía sempre muito tarde, às vezes só às duas da tarde”, explica o jovem ao i.
As relações sociais viram-se afetadas: “O meu sentido de humor definia praticamente todas as minhas relações e perdi-o”, afirma António, acrescentando que, quando começou a ter também sintomas ansiosos, o desempenho escolar diminuiu.
Uma situação que o marcou especialmente foi o episódio psicótico que teve aos 15 anos em que perdeu “o total controlo da realidade”. “Meti-me no meio da estrada enquanto os carros passavam”, confessa o jovem que acabou por ter ser “ estabilizado no hospital”.
Homens mais afetados “O sexo masculino tem uma propensão maior para os comportamentos mais violentos”, começa por explicar a psicóloga Catarina Lucas. Dos 38 suicídios consumados por jovens com menos de 25 anos em 2019, 32 foram por indivíduos do sexo masculino e ao longo dos anos as estatísticas mostram sempre o mesmo padrão, comum noutras faixas etárias. Por outro, de lado acordo com a psicóloga, são as mulheres quem acaba por fazer “mais tentativas mas com menor taxa de efetividade” e as que mais frequentemente procuram ajuda psicológica. Pensa-se que 90% dos suicídios acontecem num quadro de depressão.
O confinamento e a saúde mental O confinamento veio piorar a saúde mental de adultos e também de crianças, sendo que nos primeiros dois meses deste ano, deram entrada na urgência do Hospital Dona Estefânia e tiveram que ser atendidos por um pedopsiquiatra mais 50% de jovens do que no período homólogo do ano passado. Já no Hospital Pediátrico do Centro Hospitalar Universitário de São João (CHUSJ), os casos de tentativas de suicídio e de distúrbios alimentares pioraram durante a pandemia.
No caso das doenças mentais não se costuma usar o termo “cura” mas sim “gestão das emoções”. Devido a estar muitas vezes associada a um fator genético, alguém que se batalha com depressão ou ansiedade tem tendência a, mesmo depois de se sentir bem, estar mais “predisposto” a voltar a sentir aquela sintomatologia, explica Catarina Lucas. Nas crianças, a ansiedade e a depressão podem ser mais difíceis de diagnosticar, dado que a maneira como se expressam é essencialmente através de comportamentos e não de palavras.
Para evitar que os mais novos consigam manter-se com uma saúde mental estável enquanto estão confinados, Sara Melo adianta que “é muito importante tentar manter algumas rotinas, nomeadamente de sono, apesar de todas as alterações que a permanência em casa impõe”. Além disso pede-se aos pais que privilegiem as atividades lúdicas e ao ar livre, “sem recurso a ecrã”. Por outro lado, é necessário que se dê “tempo e espaços de algum recolhimento, em que cada criança e, sobretudo adolescente, se sinta confortável e não permanentemente invadido pela convivência familiar”.
Se uma criança está mais violenta ou prefere passar mais tempo sozinha do que o habitual é importante que não se descure esse comportamento e se pense “é da idade”. A mudança de comportamento é uma forma de expressão que requer a total atenção de quem cuida, sublinham as especialistas.