Não obstante esta constatação empírica, o transfuguismo tem má imprensa. Os praticantes, quer do lado dos compradores, quer do lado dos vendidos, são criticados pelo acto comercial em detrimento do que deveria ser o elogio do valor político acrescentado. Almas mais sensíveis, esquecendo o livre arbítrio como base da natureza humana, pretendem amesquinhar os trânsfugas, marcando-os com um ferrete de indignidade moral que os tornaria imprestáveis depois de feita a migração partidária.
Em Portugal o trasnfuguismo é abastardado, quase sempre assente na cisão partidária, muitas vezes inconsequente, não dando origem a uma fuga imediata para mais verdes pastagens. Foi o caso da ASDI, nascida das lutas de egos dentro do PSD e que só muitos anos mais tarde, já extinta, viu alguns dos trânsfugas em Governos do PS, ainda que sem assumir a militância no partido. A lusitana bastardia também está presente no transfuguismo imperfeito, aquele em que o foragido não salta imediatamente de um partido para outro. Grande respeitador dos rigores da forma, Cunhal tratou sempre de expulsar preventivamente do PCP os camaradas que davam sinais de querer procurar os amanhãs que cantam noutro partido. Expulsos primeiro, trânsfugas depois, puderam assim ser fustigados duas vezes pelas mesmas falhas morais.
Já em Espanha o transfuguismo foi elevado à categoria de arte e muito governo regional já caiu ou se formou por um voto (ou por vezes dois) de trânsfugas que súbita e desinteressadamente mudaram de ideias e de fidelidades partidárias. Jesus Gil y Gil ficou famoso não só por ter contratado Futre mas também por ter conquistado Ceuta para o homónimo GIL (Grupo Independiente Liberal), raptando uma diputada ao PSOE e que levou pessoalmente de barco no dia da votação da moção de censura, garantindo assim a independência do voto perante uma multidão ululante e com intuitos de linchamento.
O mais recente episódio de transfuguismo aconteceu a semana passada em Murcia. Na quarta-feira os Ciudadanos (C’s) anunciaram o abandono da coligação com o PP, que sustentava o Governo regional, e o apoio a uma moção de censura do PSOE, com quem pensavam juntar os trapinhos políticos. 48 horas depois o PP recomprou 3 C’s, promoveu ao governo regional 2 deles e matou a moção de censura.
Em Madrid a presidente do Governo regional, também numa coligação PP-C’s, sentada em cima de sondagens favoráveis, fruto do braço de ferro contra as medidas de confinamento impostas pelo Governo nacional, dissolveu o parlamento e convocou eleições antecipadas para 4 de Maio. Esta iniciativa deu entrada no parlamento 38 minutos antes de uma moção de censura ao estilo murciano.
O PP de Madrid, liderado por Isabel Díaz Ayuso, ganhará as eleições, muito por conta da esperada desaparição dos C’s, vítima da cláusula barreira de 5% dos votos. Mas o PP não deverá conseguir uma maioria absoluta. Fica a dúvida: o Vox entrará para o governo de Madrid ou limitar-se-á a um apoio parlamentar?
O que acontecer em Madrid terá consequências nacionais, desde logo a possibilidade de Ayuso promover a defenestração de Casado e assumir a liderança do PP. Mas também poderá significar a “normalização” do Vox. Más notícias para Pedro Sanchez que via no C’s uma alternativa à coligação, cada vez mais periclitante, com o Unidas Podemos. Antecipando o perigo, Pablo Iglesias abandonou o Governo para se apresentar como candidato a Madrid, federando a esquerda e pedindo, sem sucesso, apoio ao seu Íñigo de estimação (e ao Más Madrid), co-fundador e trâsnfuga do Podemos.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990